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É importante, para Foucault, fazer a diferenciação dos modos de funcionamento da Disciplina e da Biopolítica. Não para excluir um do outro, mas exatamente para entender seus entrelaçamentos na passagem do mundo moderno ao contemporâneo. 

Em outras palavras, o funcionamento da disciplina não exclui a Biopolítica e vice-versa. Muito pelo contrário, uma alimenta a outra e potencializa seu funcionamento.

A disciplina é essencialmente centrípeta. Quero dizer que a disciplina funciona na medida em que isola um espaço, determina um segmento. A disciplina concentra, centra, encerra”

– Foucault, Segurança Território e População, p. 58

Dissemos anteriormente que o primeiro passo da disciplina é trabalhar em um espaço vazio, assim ela pode funcionar plenamente, sem limites. Para isso, ela rouba a cela do religioso e a utiliza a seu favor. Este espaço isolado permite à disciplina concentrar todos os seus dispositivos.

Partimos da ideia óbvia: a disciplina normaliza, assujeita indivíduos. Ela estabelece sequências e coordenações. A partir daí ela pode dizer o que é normal e anormal. Este procedimento impõe um modelo e procura aproximar os indivíduos dele. 

A disciplina, é claro, analisa, decompõe os indivíduos, os lugares, os tempos, os gestos, os atos, as operações. Ela os decompõe em elementos que são suficientes para percebê-los, de um lado, e modificá-los de outro”

– Foucault, Segurança Território e População, p. 75

Por outro lado, os dispositivos de segurança são centrífugos. Ou seja, tendem a se ampliar infinitamente. Novos elementos tentem a se integrar: produção, afetos, subjetividades, comportamentos, maneiras de circular e consumir.

Ou seja, o problema da Biopolítica não é o isolamento, é o da movimentação. Não é traçar linhas de separação, mas entender como as circulações ocorrem no território. Ou seja, é um novo personagem que surge em cena: a população ativa, circulante, viva. 

Outra grande diferença: a disciplina procura regulamentar tudo. Nada pode escapar de seu olhar vigilante. Nada deve ser deixado a seu bel-prazer. O poder diz a todo instante como proceder, o que cada um deve fazer em determinado lugar no espaço e no tempo.

os dispositivos de segurança partem do princípio do laisse faire (como vimos ao falar de Liberalismo e Neoliberalismo). Não que tudo esteja liberado, mas a biopolítica acompanha o movimento antes de intervir. Ela observa, anota, compõe quadros estatísticos para apenas então dizer: deve ser feito isso e isso. A Biopolítica acompanha o movimento, para dominar mais e melhor.  

Outra característica: a disciplina divide tudo em modelos estáticos. Há uma linha clara: deve ser assim, não deve ser assim, este é o modelo, faça desta maneira.  Enquanto isso, a Biopolítica observa de longe, procurando entender como os movimentos se dão, como os fluxos circulam.

Em outras palavras, a Lei proíbe, a disciplina prescreve e a segurança, sem proibir nem prescrever, mas dando-se evidentemente alguns instrumentos de proibição e de prescrição, a segurança tem essencialmente por função responder a uma realidade de maneira que essa resposta anule essa realidade a que ela responde – anule, ou limite, ou freie, ou regule. Essa regulação no elemento da realidade é que é, creio eu, fundamental nos dispositivos de segurança”

– Foucault, Segurança, Território e População

O objeto da Disciplina são os corpos individuais. Por isso a insistência sobre um espaço de formação, de exercícios. Ela se acumula numa capacidade de gênese de um indivíduo, se antes ele não podia, agora ele pode. Já a Biopolítica encara o homem como ser vivente e múltiplo, um sujeito de interesses e desejos, vontades que procuram satisfazerem-se e desejos que procuram se concretizar.

A Vigilância disciplinar concentra-se sobre fenômenos individuais, instantâneos, microrregulatórios. É a técnica da indústria, como movimentos rápidos, efetivos e eficazes. A biopolítica necessita olhar do alto: sua preocupação será com o interesse individual se relacionando com as massas, com uma população, com um mercado de produção e circulação de mercadorias. 

Por isso, cada uma das duas formas de exercer o poder fará uso de mecanismos diferentes, mas complementares: A disciplina se preocupará quase exclusivamente com o adestramento do corpo. Ela modelará comportamentos através da vigilância ininterrupta, exaustivos exames e contínuos exercícios. Sua finalidade é criar corpos economicamente úteis e politicamente dóceis. 

Enquanto a Biopolítica se utilizará de previsões, estatísticas e conduções quase imperceptíveis. Seu objetivo é o equilíbrio da população, sua homeostase, uma regulação fina e harmônica. Em suma, se a disciplina sequestra os movimentos mecânicos do corpo, a biopolítica, por sua vez, sequestra o movimento vivo.

A governamentalidade realiza a fusão das três maneiras do poder se exercer. O Estado de Justiça, Soberania; o Estado Administrativo, Disciplinar; e o Estado de Governo, através da Biopolítica. A Soberania de um país não se sustenta sem a disciplinarização interna contínua e a Gestão das subjetividades. Cada vértice do triângulo se fecha sobre o indivíduo e o captura. Não há escapatória.

Primeiro, o Estado Justiça, nascido numa territorialidade de tipo feudal, que correspondia grosso modo a uma sociedade da lei – leis consuetudinárias e leis escritas -, com todo um jogo de compromissos e litígios; depois, o estado administrativo, nascido numa territorialidade de tipo fronteiriça, e não mais feudal, nos séculos XV e XVI, esse Estado Administrativo que corresponde a uma sociedade de regulamentos e disciplinas; e, por fim, um Estado de Governo que já não é essencialmente definido por sua territorialidade, pela superfície ocupada, mas por uma massa: a massa da população, com seu volume, sua densidade, com, é claro, o território no qual ela se estende, mas que de certo modo não é mais que um componente seu”

– Foucault, Segurança Território e População, p. 145

Texto da Série:

Biopolítica

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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