Skip to main content
CarrinhoClose Cart

Paralogismo é um raciocínio falso. Pode acontecer por descuido ou por más intenções. A ideia já aparece em Aristóteles, quando se comete um erro ao formular um silogismo, mas ganha força com Kant, quando este escreve a Crítica da Razão Pura.

Quando a Razão quer ultrapassar os puros caminhos da experiência, ela incorre em paralogismos. Aqui, os paralogismos são falsos raciocínios do inconsciente, são erros que a psicanálise comete (ingenuamente ou maldosamente?) ao proferir determinadas conclusões.

Tudo começa com o funcionamento ilegítimo das sínteses, quando elas começam a funcionar defeituosamente, capengando. Se a repressão é muito grande, as peças deixam de funcionar corretamente e se fecham, se quebram.

Francis Bacon

Francis Bacon

1º Paralogismo – Extrapolação

A primeira síntese é a conectiva, ela funciona com a conjunção “e… e… e…”, isso significa que as conexões são sempre binário-lineares e tendem ao infinito. Um objeto não passa de uma máquina que se conecta a outra máquina. Certo, mas o que acontece se esta potência de conexão se fecha?

Uma figura se forma, um objeto global. A partir de então, todas as partes do objeto serão vistas partes de um todo maior do qual fazem parte. Eis a síntese ilegítima: quando há a impressão de totalidade, parte de um todo. 

Faz-se um uso transcendente das sínteses do inconsciente, passa-se dos objetos parciais destacáveis ao objeto completo destacado. Atribuindo aos objetos parciais a ideia de falta, a ideia de que são parte de algo. Extrapola-se de um objeto um todo.

O seio é parte da mãe, o pênis é parte do pai… e assim por diante. Os objetos perdem sua potência de conexão e tornam-se meras partes de ideias abstratas.

A psicanálise promove essa conversão fazendo, primeiramente, um uso global e específico das sínteses conectivas. Esse uso pode ser definido como transcendente, e implica um primeiro paralogismo na operação psicanalítica”

– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 104

 

Francis Bacon

Francis Bacon

2º Paralogismo – Double-bind

O duble-bind é a situação corrente da psicanálise. É Édipo por todos os lado! Édipo como estrutura normal, Édipo como crise! Ela se dá quando as disjunções se tornam exclusivas. É como um caranguejo que nos pega com suas patas. É a síntese disjuntiva do inconsciente: ou… ou… ou…. que exclui qualquer outra possibilidade.

Par eu ganho, ímpar você perde”

Podemos chamar de duplo impasse: cura-se em Édipo, fica-se louco de Édipo! Impossível escapar. Ou Édipo, ou Loucura! Édipo ata o inconsciente dos dois lados. O esquizo se produz procurando escapar deste duplo impasse, fugindo ou fazendo fugir. Mas quem disse que é fácil? Deixa-se um polo para entrar no outro… não conseguimos sair desta armadilha: normalidade neurótica ou esquizofrenia psicótica. O psicanalista diz: “my way or the highway…

Uma dupla pinça que pega dos dois lados e esmaga a produção desejante do inconsciente. O inconsciente colonizado não sabe falar outra língua! Se está em crise, é Édipo, se está bem, é Édipo novamente. Fora de Édipo não há nada! Apenas a loucura.

Estamos profundamente cansados dessas histórias em que se está bem graças a Édipo, doente de Édipo, sofrendo diversas doenças sob Édipo”

– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 113

Francis Bacon

Francis Bacon

3º paralogismo – Aplicação bí-unívoca!

A psicanálise sempre (sempre mesmo) reconduz o delírio para a família, ainda que se utilizando de subterfúgios. Pegue qualquer caso de Freud. Eis o terceiro paralogismo: a conjunção bi-unívoca remete todo social às figuras familiares. A comparação é inesgotável, infinita e incansável. 

Há um uso defeituoso da síntese conjuntiva que leva a dizer: “então era seu pai, então era sua mãe…”. E nada tem de surpreendente que só depois se descubra que afinal tudo isso era o pai e a mãe, visto que era isso o que já se supunha desde o início, mas que, em seguida, teria sido esquecido-recalcado para, em seguida, vir a ser reencontrado”

– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 139

Com o funcionamento defeituoso desta terceira síntese, não há mais abertura para o devir, não se passa mais qualquer tipo de intensidades. Estamos presos à caverna de Platão, condenados a consumir eternamente imagens familiares. As relação são bi-unívocas, só há duas vozes e uma corresponde à outra: de uma lado a família, do outro a sociedade. Os agentes de produção social identificam-se com os agentes de produção familiar.

Deitamos no divã e somos levados a dizer: “Ora, vejam só, então era meu pai, então era minha mãe”. O triângulo se fecha, agora só há um caminho para o desejo, ele aprender a rezar o pai nosso da psicanálise. Aí está o incurável familismo da psicanálise! Tudo está enquadrado em Édipo, tudo é reduzido a imagens familistas, toda a produção desejantes é esmagada e condicionada às mesmas figuras da infância. 

É Édipo que nos faz homens, seja para o melhor ou para o pior, diz o tolo. O tom pode variar, mas o fundo permanece o mesmo: não escaparás a Édipo, só tens escolha entre a “saída neurótica” e a “saída não neurótica”. O tom pode ser o do psicanalista raivoso, o psicanalista-tira: os que não reconhecem o imperialismo de Édipo são perigosos desviantes, esquerdistas que devem ser entregues à repressão social e policial”

– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 148

Francis Bacon

Francis Bacon

4º Paralogismo – Desfiguração do recalcado

Sendo assim, cabe a nós perguntar: mas Édipo exprime efetivamente o desejo? É o incesto e o parricídio que é ansiado ardentemente por nós? Difícil responder…

Mas os psicanalistas argumentam: “A lei só proíbe o que os homens seriam capazes de fazer sob a pressão de alguns dos seus instintos; assim, da proibição legal do incesto, devemos concluir que existe um instinto natural que nos impele ao incesto”. Se é proibido, então é porque provavelmente é desejado. Não é? Afinal, porque proibir algo que não é desejado?

A lei nos diz: não desposarás tua mãe e não matarás teu pai. E nós, sujeitos dóceis, nos dizemos: então é isso que eu queria!”

– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 156

Procedemos ingenuamente, como se fosse possível concluir do recalcamento a natureza do recalcado. Ora, que paralogismo! O quarto até agora! A proibição não diz da natureza do que é proibido! Não queríamos nos deitar com a mãe e nem matar o pai! Só queríamos maquinar nosso desejo no real! Por que não nos deixem em paz? 

Aqui está o raciocínio correto: o próprio ato de repressão do desejo o deforma, olhamos para ele, mas estamos com a visão turva, não o vemos direito no escuro do inconsciente e o achamos monstruoso! Mas será mesmo?

A família torna-se a grande responsável pelo recalcamento. É sua tarefa cortar os fluxos e dar forma ao desejo. Ou seja, o recalcamento é instrumento de repressão, é força normativa. Como se tivéssemos que guardar algo frágil em um lugar em que não há espaço (guardar o desejo no seio da família). A família grita: guarde este desejo! Aqui está uma bagunça! E nós nos esforçamos para agradar papai e mamãe. Mas amassamos toda a produção desejantes no processo.

Eis que surge aqui uma imagem falsificada, quando abrimos as portas do inconsciente, o desejo está deformado, amassado, quebrado, o desejo está recoberto por uma imagem deslocada e falsificada que o próprio recalcamento suscitou. 

Veja, era isto que você queria! Todavia, é esta conclusão, que vai diretamente do recalcamento ao recalcado, e da proibição ao proibido, que já implica todo o paralogismo da repressão”

– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 216

Ou seja, o Complexo de Édipo em si mesmo é um paralogismo! Nasce da produção social repressiva que delega à família o poder recalcante. Ao encararmos o desejo, ficamos envergonhados: “ele não estava assim quando foi recalcado”. Enquanto isso, atrás do divã, o psicanalista nos olha com um olhar condescendente: “É isso, não é? Aí está, é isso que você queria!”

Mas insistimos, o incesto é apenas um efeito retroativo! Ele não é causa, é efeito! O peso da repressão é o que desfigura ou desloca. Só conseguimos falar dele utilizando a própria linguagem que nos foi imposta. “É papai, é a mamãe, sou eu…” 

Édipo é a imagem enganosa à qual o desejo se deixa prender (É isso que você queria! Os fluxos descodificados, o incesto!). Começa então uma longa história, a da edipianização”

– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 220

É triste cairmos sempre neste velho lenga lenga… “Cuidado: o incesto só é desejado porque é proibido, não vá tornar-se mais um Édipozinho”. Mas o desejo não é edipiano, ele torna-se edipiano, e apenas com muito custo! Precisamente porque incidem sobre ele as proibições. Em suma, a repressão do incesto não nasce de uma representação edipiana recalcada. Eis o que se passa: o processo de repressão e recalcamento fazem nascer uma imagem edipiana desfigurada do próprio recalcado.

Édipo está no fim, não no começo! Recalcamos a produção desejante, suas conexões legítimas, infinitas! Isso que é realmente perigoso, isso que a sociedade teme. Mas, da escuridão do inconsciente, retiramos uma imagem totalmente diferente e a colocamos no altar da psicanálise. Pronto, agora pode começar nosso culto ao Dr. Freud. Ele está com a faca da castração e o queijo do desejo na mão.

O que é recalcado é a produção desejante. Recalcado é aquilo que, desta produção, não passa para a produção ou reprodução sociais, é o que aí introduziria desordem e revolução, os fluxos não codificados do desejo”

– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 229

Francis Bacon

Francis Bacon

5º paralogismo – o após

Costumamos pensar na disparidade entre a produção desejante e sua socialização, como se elas fossem diferentes. Como se a socialização só viesse após Édipo. Como se houvesse uma mudança no desejo para que se torne social. Que grande besteira, que grande e último paralogismo. 

A ideia de um após nos parecia ser um último paralogismo da teoria e da prática psicanalíticas; desde o início, a produção desejante ativa investe no seu próprio processo um conjunto de relações somáticas, sociais e metafísicas que não sucedem às relações psicológicas edipianas”

– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 234

Muito pelo contrário! Édipo é uma reação desejante, efeito, formação, resultado, mas sempre em íntima relação com o social. Podemos até dizer que é universal, mas apenas no sentido de que é um investimento de formação social contínuo. Produto direto da repressão-recalcamento. 

Édipo nunca é causa: Édipo depende de um investimento social prévio de um certo tipo, capaz de se assentar sobre as determinações da família”

– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 236

Mas a psicanálise chega e carimba embaixo seu selo de entendimento do desejo. Marca seu território: esta subjetividade é minha. Faz patente do desejo edípico e o pega para si, é sua exclusividade, seu produto. Esta é nossa doença: Édipo! Este processo de desaceleração do desejo, amassamento do desejo, desfiguração do desejo. Se Édipo é o refúgio do analista, a esquizoanálise procura forçar a máquina em outra direção…

A esquizoanálise não se propõe a resolver Édipo, não pretende resolvê-lo melhor do que a psicanálise edipiana. Ela se propõe desedipianizar o inconsciente para chegar aos verdadeiros problemas. Ela se propõe atingir essas regiões do inconsciente órfão, precisamente “para além de toda lei”, ali onde o problema nem mesmo pode ser levantado”

– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 113

Texto da Série:

Esquizoanálise

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

Mais textos de Rafael Trindade
Subscribe
Notify of
guest
2 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
eder
eder
5 anos atrás

Sou leigo nisso tudo, mas quando lia sobre o desejar o pai da psicanálise ficava me achando errado por não desejar…nunca desejei…

Rodolfo soares
Rodolfo soares
4 anos atrás

Se Freud assusta o mundo em 1924, trazendo a ” peste” Édipo. Gilles Deleuze nos trás a vacina, a cura. Perguntar, isso funciona ? E, não o que é isso. Amém Deleuze e Guatarri.