Seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se decide”
– Deleuze e Guattari, Mil Platôs, Vol 3
Se no Anti-Édipo o conceito de Corpo sem Órgãos é pensado em termos ontológicos, no Mil-Platôs o tom se altera radicalmente, pois agora o CsO é apresentado essencialmente como um conjunto de práticas, e assim entramos no campo da ética. A constatação de que há um corpo intensivo como plano de imanência para toda máquina desejante agora nos leva a pensar quais são os agenciamentos capazes de fazerem esse corpo surgir.
Se em um primeiro momento eles perguntavam o que é o Corpo sem Órgãos, agora querem saber o que pode um Corpo sem Órgãos. É impossível responder a essa pergunta sem experimentar as potências de que um corpo é capaz. Sendo assim, o CsO é o plano de experimentação em seu limite máximo. Nunca chegamos a esse ponto, mas estamos sempre operando nossos agenciamentos sobre sua superfície. É como a ideia de infinito, não a compreendemos nunca, mas nunca deixamos de perseguí-la.
Antes de mais nada, é preciso lembrar que o CsO foi criado por Antonin Artaud no âmbito das artes cênicas. É por isso que o Platô de Deleuze e Guattari possui como sub-título: 28 de Novembro de 1947, data em que Artaud realizou uma transmissão radiofônica chamada “Para acabar com o juízo de Deus”. O tom do texto é o de denúncia do aprisionamento do corpo intensivo pelas diversas organizações a que ele é submetido: moralidade, religião, capitalismo, colonialismo e imperialismo. Artaud cunha o termo “Corpo sem Órgãos” na cena final:
Colocando-o de novo, pela última vez, na mesa de autópsia para refazer sua anatomia. Eu digo, para refazer sua anatomia. O homem é enfermo porque é mal construído. É preciso desnudá-lo para raspar esse animalúnculo que o corrói. Mortalmente, Deus e, juntamente com deus, os seus órgãos. Pois, amarrem-me se quiserem, mas não existe coisa mais inútil que um órgão. Quando tiverem conseguido fazer um corpo sem órgãos, então o terão libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade. Então o terão ensinado a dançar às avessas, como no delírio dos bailes populares, e esse avesso será seu verdadeiro direito”
– Antonin Artaud, Para Acabar com o Juízo de Deus
Deleuze e Guattari escutam a crítica incisiva de Artaud – ele mesmo tendo sido institucionalizado como esquizofrênico – na forma de um grito por liberdade e propõem que pensemos a relação entre multiplicidade e estratificação que ocorre em qualquer corpo. Cada órgão, tendo a sua função, faz o organismo funcionar. Cada parte desempenha seus deveres, Artaud chega e diz: “Chega de funções, chega de hierarquias”. O corpo está submetido à uma organização ilegítima? Então nós reivindicamos outro corpo: um corpo sem órgãos, isto é, um corpo que não esteja esquadrinhado por funções, mas que funcione por intensidades.
Corpo sem órgãos é a constatação de que o corpo organizado é sempre um recorte da intensidade de que é capaz. É o conceito que violenta a consciência neurótica, levando-a a pensar: já levei longe o bastante as minhas potências? É claro que dependemos de alguma organização, mas será que ela nos diz respeito? Há um corpo intensivo que pede passagem desorganizando a máquina na forma de desejo. Há uma virtualidade atravessada por uma infinidade de práticas que levam o pensamento para além da vida regular e funcional do organismo. Este corpo intensivo virtual é o Corpo sem Órgãos, o que Deleuze e Guattari querem é encontrar práticas que o atualizem nos próprios corpos.
Para quantas coisas serve uma mão? É um campo virtualmente infinito, multiplicidade pura, que se encontra sempre apreendida numa estrutura dada. O Capital tem seus usos previstos para as mãos dos trabalhadores, assim como a Família e o Estado. Esse tipo de aprisionamento de um órgão a uma função é o que compõe o organismo. Então, alcançar as próprias intensidades depende da capacidade de desorganizar-se da estrutura dada, na medida em que percebe-se que ela não nos diz respeito.
Desde sempre, um corpo é simplesmente um conjunto de órgãos. A finalidade nunca foi dada, a natureza não diz o que fazer com os órgãos que temos. Não há manual para o uso do corpo, mas quando olhamos bem vemos que há uma norma, e todos nós tivemos nossas funções definidas por ela. Assim, o CsO é a descoberta de um corpo prévio a qualquer organização, subjacente a toda estrutura, capaz de romper em qualquer estrato. Como terra ainda não descoberta, o CsO é o horizonte não colonizado esperando ser explorado.
O corpo tem limites orgânicos, mas não se reduz a esses limites. Ao contrário, em todo corpo desejante pulsa uma intensidade que contesta seus próprios limites. Se todos esses corpos estão inseridos em estratos mais ou menos segmentados, então, de forma muito simples, o CsO pede apenas por mais usos possíveis. Ele é o corpo não formado, o ovo que precede a formação de todos os órgãos, abrindo sempre mais possibilidades do que aquelas nas quais a vida se encontra encerrada. É fácil concluir por que isso é absolutamente revolucionário: o CsO leva o desejo para além das estruturas que o querem contido.
O organismo já é isto, o juízo de Deus, do qual os médicos se aproveitam para tirar seu poder. O organismo não é o corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO, quer dizer um fenômeno de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um trabalho útil.”
– Deleuze e Guattari, Mil Platôs, 3
Cuidado para não confundir. O CsO não é inimigo dos órgãos, mas do organismo. Ou seja, não é inimigo dos instrumentos, mas inimigo da instrumentalização. Para busca de intensidades, o CsO procura desfazer-se da organização produtiva em que foi inserido para tornar-se produção de realidades diferentes das que lhe deram. Um órgão é repleto de possibilidades intensivas desde que não seja limitado de antemão por usos “corretos”, prescrições únicas e modelos rígidos . Desfazer-se dos órgãos é, na realidade, desfazer-se das funções atribuídas normativamente a eles.
O corpo é um campo aberto que podemos povoar de intensidades. Para isso, basta começar a experimentar. Encontramos um novo corpo em um jogo, em um exercício, em um desafio. Desde que levado a sério, qualquer motivo pode levar a um rearranjo dos órgãos para além do organismo. Essa seriedade é a da criança brincando, que entra em devir com dois baldinhos e um pouco de areia. Em suma, o CsO é constituído por qualquer programa de experimentação capaz de fazer um corpo descobrir mais do que pode.
Se ouvirmos atentamente, escutaremos o grito de Artaud em qualquer corpo dócil: “me fizeram um organismo, me dobraram indevidamente, roubaram minhas máquinas desejantes”. Dar fim ao juízo de Deus nada mais é do que enfrentar a imposição transcendente de uma forma (ou norma). Em tudo isso, ressoa a afirmação incandescente de Espinosa: “ninguém ainda determinou o que pode um corpo”. Essa indeterminação permanecerá sempre como um direito a ser reivindicado contra Deus, o senhor de todos os organismos.
O CsO, imanência, limite imanente. Os drogados, os masoquistas, os esquizofrênicos, os amantes, todos os CsO prestam homenagem a Espinosa. O Cso é o campo de imanência do desejo, o plano de consistência próprio do desejo (ali onde o desejo se define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior, falta que viria torná-lo oco, prazer que viria preenchê-lo)”
– Deleuze e Guattari, Mil Platôs, 3
Quando se aproxima do CsO, o corpo deixa de ser produtivo para os outros e torna-se intensivo para si mesmo. Pensemos novamente na mão: usada para apertar o parafuso com a chave de fenda, mover a alavanca na fábrica, escrever o relatório no escritório; quando esta mão perde a finalidade que lhe foi imposta, se torna um Corpo sem Órgãos. Então pode voltar-se contra uma organização para aprender a dedilhar um violão, pintar um quadro, acariciar alguém. A experimentação é um convite para a diferenciação, faz cruzar novas linhas, como pernas que se cruzam num passo de tango.
Enquanto conjunto de práticas, o Corpo sem Órgãos é a capacidade de abandonar as formas sem se deformar por completo. É isso que podemos chamar de devir. Conjugar as ideias, as relações, os fluxos de maneira tal que nosso corpo se transforme em uma superfície intensiva, inaugurando novos afetos no encontro com o mundo. Se a experimentação é um caminho, a prudência é a medida que nos acompanha como guia. Enfim, nos tornamos revolucionários porque desejamos retomar o que é nosso: a potência de existir.
onde posso encontrar mais sobre o CsO?
Gostaria de indicações de filmes de Artaud onde expressa esse corpo sem orgãos¹
A razão adequada em artaud é o gnosticismo antigo e seu confronto com santo Agostinho. Baseado numa divindade oculta, o demiurgo criador do bem e do mal. Ao contrário de Orígenes e outros que praticara m a castração. Em o teatro e seu duplo o unico filósofo citado é santo agostinho. Opositor ferrenho do pelagianismo contra o livre arbitro, mestre de lutero e Calvino. A Tertuliano coube a perseguição aos gnósticos valentinianos, escreveu ressurreição da carne, justamente uma chamada do teatro da crueldade. Com bom faro dá prá descobrir a religião ética de Artaud. Sem contar a aventura xamânica com… Ler mais >
Tenho estudado Artaud desde que comecei estudar teatro em 2015, alguma coisa eu sentia, pensava que era o desconforto de não entender o que ele tava dizendo, intelectualmente. Mas era em processos de experimentação dentro da sala de ensaio que a sensação se fez compreendida, mesmo que não encontre palavras ainda pra descrever o que. Acompanho o RI desde os primeiros textos, e agora na pandemia, me aprofundei ainda mais em Guattari e Deleuze, gosto bastante da forma como vcs relatam suas experiências nos estudos, com os textos, os podcasts. Gosto disso!