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Embora pouco sistemática, a obra de Camus é extremamente coesa. A morte, seja a própria seja a do outro, como ilogicidade intrínseca ao mundo, como face reversa da vida, é o grande problema que move a sensibilidade do autor e coloca os textos em um mesmo eixo temático. Os ensaios, os romances, os contos, as peças de teatro, são frutos desse embate constante entre a sensibilidade vital e a realidade da morte. O conceito de medida não é uma exceção, ele surge justamente para responder a questões suscitadas pela revolta.

Àqueles que perguntavam como havia chegado a edificar sua teoria, Newton podia responder: “Pensando sempre nela.” Não há grandeza sem um pouco de teimosia”

Camus, A Inteligência e o Cadafalso

A filosofia não deixa de ser um jeito teimoso de encarar os problemas. Não no sentido infantil, mas na insistência do filósofo em uma questão. O infinito jogo entre vida e morte é o que ocupa os pensamentos de Camus e o faz criar conceitos. Ele o fez em três momentos distintos, mas atravessado pela mesma problemática: começando pela ontologia, o absurdo; passando pela ética, a revolta; terminando na vida, no amor.

Infelizmente, Camus faleceu antes de concluir esse tríptico, mas no final de “O Homem Revoltado”, encontramos apontamentos que levam diretamente ao que seria o terceiro momento de sua filosofia. A última parte do livro nos apresenta a necessidade de resgatar o amor pela vida como única maneira legítima de fundamentar a revolta. Em conjunto com os esboços e anotações que Camus mantinha em seus cadernos, conclui-se que a fase final de sua filosofia seria dedicada ao conceito de medida.

Se a revolta pudesse criar uma filosofia, seria uma filosofia dos limites, da ignorância calculada e do risco.”

Camus, O Homem Revoltado, O Assassinato Histórico

Nietzsche foi o primeiro a falar da necessidade de superar o homem e foi endossado por Foucault quase um século mais tarde. Camus alinha-se ao pensamento nietzschiano na constatação de que a formação do homem fracassa, mas mantém a aposta em algum tipo de humanidade. Não se trata de abandonar a forma humana, mas renová-la, substituindo sua formação histórica por um modo de vida que não apela senão aos seus próprios limites.

Nesse sentido, Camus é um estranho humanista e traz uma espécie diferente de moral. O mundo é absurdo, isso não significa que a ação também deva ser. A filosofia da revolta precisa de limites claros, o suicídio e o assassinato devem ser limitados. Por mais paradoxal que possa parecer, é a limitação da morte que nos dá medidas para a afirmação da vida. É só a partir desse delineamento que ela pode ter algum sentido. 

Em uma crítica ao pensamento niilista, que recusa qualquer moral, Camus esforça-se para dar uma regra à ação. No entanto, o filósofo sabe muito bem que uma ética da revolta não funcionará bem com uma regra moral como o “não matarás”. Daí a necessidade de um esforço, de uma medida que restrinja, tanto quanto possível, a morte. A moral é cega, ela não serve bem à revolta, mas isso não nos impede de pensar limites que imponham problemas ao assassinato.

Por um momento, parece contraditório que Camus concorde que não há qualquer valor a priori no mundo e, ao mesmo tempo, coloque um ponto fixo no qual possa restringir a ação. Lembramos de Kant, que coloca limites estreitos para o conhecimento mas continua com a moral. Por mais que não haja motivo transcendente para não matar, decidimos não matar mesmo assim. Camus está perto de Nietzsche quando afirma o absurdo e próximo de Kant quando recusa qualquer lógica de morte. 

Entretanto, como já dissemos, um mandamento não resolve todos os problemas da revolta. Muitas vezes, a luta é o elemento inevitável de uma revolta efetiva. Há situações limítrofes que nos obrigam a admitir: alguns morrerão. Não podemos fingir que determinadas causam exigem a força bruta. Camus, ele mesmo, gostaria de ter lutado nas trincheiras contra os nazistas, não fosse a tuberculose. Então, como seguir essa estranha moral que nos aconselha a não matar quando sabemos que a mudança só ocorre por meio do combate?

A liberdade absoluta zomba da justiça. A justiça absoluta nega a liberdade. Para serem profícuas, ambas as nações devem encontrar uma na outra seus limites. […]  Há,  finalmente, uma justiça, embora bastante diferente, em restaurar a liberdade, o único valor imorredouro da história”

Camus, O Homem Revoltado, O Assassinato Histórico

A condição do revoltado impede que ele recuse de modo absoluto o assassinato, pois isso o faria aceitar o mal e resignar-se. A justiça absoluta, isto é, seguir a lei em todos os casos, implicaria em deixar de revoltar-se. Sem autonomia, sem questionar as leis, o revoltado torna-se apenas um conformado. A liberdade é garantida pela possibilidade de dizer não.

Por outro lado, os limites colocados exigem que ele não mate, ao preço de trair o seu primeiro valor, a vida. A liberdade absoluta, isto é, agir sem qualquer freio moral, implicaria no rebaixamento da revolta a uma lógica suicidária e homicida. Sem um limite, o revoltado torna-se apenas um assassino em potencial. A justiça é garantida por uma fidelidade aos valores da terra.

A conclusão é que nenhum absoluto pode responder às exigências da revolta. A revolta não é um princípio estático, mas um equilíbrio dinâmico, uma postura em movimento. Há um senso de justiça e um senso de liberdade que precisam dar um ao outro os seus limites. A revolta nunca deixa de tensionar o pensamento, ela é um modo guerreiro de pensar. Ela leva em conta ao mesmo tempo a exigência de não matar e a necessidade de agir a despeito da morte. 

Camus não é ingênuo nem moralista, ele sabe que em determinados casos a luta armada, a morte, a guerra é inevitável. O que o incomoda não é isso, mas a racionalização da morte, isto é, o uso desmedido da razão para justificar o assassinato. O problema não é que a mudança exija a luta, mas que a luta exija a morte. Precisamos agir tendo sempre em mente que não estamos autorizados a retirar a vida dos outros, pois fora do frágil núcleo racional em torno de nossos umbigos, nada garante o sentido que tentamos realizar no mundo.

O irracional limita o racional, que por sua vez lhe dá sua medida. Algo, finalmente, tem sentido, algo que devemos obter da ausência de sentido.”

Camus, O Homem Revoltado, Medida e Desmedida

O absurdo é o que coloca limites à revolta. A medida é um território conquistado no seio da desmedida, mas que jamais pode cruzar seus limites, ao preço de tornar-se também desmedida. A única coisa que valida nossas medidas é nossa própria vida, o mundo não tem nada a ver com isso, a não ser para dar-lhe limites. Nem o real é totalmente racional, nem o racional é totalmente real.

A revolta é uma negação, mas com base em uma afirmação maior. Se essa negação se dá pelo assassinato, a lógica desmonta, pois não há afirmação que supere a morte. A vida, enquanto afirmação primeira, não pode suportar que se mate em seu nome. Uma exceção é a luta em legítima defesa da vida, contra os exércitos que bradam a morte.

As ideologias que orientam o nosso mundo nasceram no tempo das grandezas científicas absolutas. Nossos conhecimentos reais só autorizam, ao contrário, um pensamento das grandezas relativas”

Camus, O Homem Revoltado, Medida e Desmedida

É preciso abandonar o “tudo ou nada” que embasa nossas revoluções e redescobrir as grandezas relativas, as pequenas certezas, as unidades singulares. Essa é a única postura coerente quando levamos em conta, à maneira de Heráclito, que o ser e o devir coexistem. A vida autêntica concilia Sísifo, o absurdo, Prometeu, o revoltado e Nêmesis, a medida.

Camus propõe a tarefa de pensar para além do niilismo, mas sem apelar a qualquer totalidade. Sua filosofia apresenta uma ética solar na medida em que pensa a ação limitada pela morte e iluminada pela vida. Gostamos de imaginar que, se tivesse vivido alguns anos mais, Camus teria lido Espinosa, pois ambos têm em comum a clareza de que não se sai por completo da servidão, mas se alcança proporcionalmente a liberdade, por meio da descoberta de medidas entre o mundo e nós mesmos.

A medida não é o contrário da revolta. A revolta é a medida, é ela quem a exige, quem a defende e recria através da história e de seus distúrbios. […] A medida, nascida da revolta, só pode ser vivida pela revolta. Ela é um conflito constante, perpetuamente despertado e dominado pela inteligência. Ela não vence nem a impossibilidade, nem o abismo. Ela se equilibra com eles. Não importa o que fizermos, a desmedida conservará sempre o seu lugar no coração do homem, no lugar da solidão. Carregamos todos dentro de nós, as nossas masmorras, os nossos crimes e nossas devastações. Mas nossa tarefa não é soltá-los pelo mundo, mas combatê-los em nós mesmos e nos outros. […] Mãe das formas, fonte da verdadeira vida, ela nos mantém sempre de pé, no movimento selvagem e disforme da história”

Camus, O Homem Revoltado, O Pensamento Mediterrâneo

Texto da Série:

O Homem Revoltado

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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