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História da LOucaura - Foucault

O Navio dos Loucos – Hieronymus Bosch

A loucura possui uma história, isso quer dizer que ela vai mudando conforme o tempo passa. No renascimento, por exemplo, a loucura circulava, ou melhor, navegava. Não havia um hospital ou prisão para o louco, e ele nem era chamado desta maneira. Os loucos da cidade, se incomodavam muito, eram embarcados em navios e partiam para outro lugar.

Havia a ideia de que as águas e o movimento do barco eram bons para o louco. E, afinal, se ele não se encaixava na cidade, era o melhor jeito de se livrar do inconveniente. Mas a loucura naquele tempo era uma espécie de saber, que zombava da razão, que quebrava o raciocínio comum. Uma espécie de saber trágico que expressava um conhecimento “de outro mundo”.

Isso fazia com que a loucura se ligasse ao sagrado, ao misterioso, ao demoníaco. De todo modo, não pertencia ao profano, ao cotidiano e à vida comum. Ou seja, não era deste mundo, e por isso não fazia parte nem era perseguida, simplesmente vivia à margem.

O que era a loucura? Apenas um outro modo de funcionamento, uma forma diferente de razão. E no embate, na disputa, podia acontecer algo como uma passagem de uma para outra, ou seja, com seus voos, a razão tangenciava os abismos da loucura. Já dizia Erasmo, Pascal e Montaigne, há uma força louca subjacente ou ao menos paralela à razão. 

Na Grécia ela era muitas vezes um saber superior, ou uma maldição dos deuses. Em Dom Quixote, ela é a visão de coisas que os outros não veem. Ou seja, ela fura a fina camada do real revelando as potencialidades e as fraquezas do homem. Sim, sim, somos razão, mas até que ponto? Onde começa a loucura e termina a Razão? Não sabemos dizer, o campo é de disputa.

Qual a grande mudança que Foucault percebe com o fim do Renascimento e o começo da Era Clássica? O Racionalismo. Ele marca o fim dos privilégios da loucura, porque agora esta deve se submeter à consciência crítica de uma Razão inquestionável.

A experiência trágica e cósmica da loucura viu-se mascarada pelos privilégios de uma consciência crítica”

– Foucault, História da Loucura, p. 29

Dirá Foucault: “O barco da loucura não navega mais o rio, ficará atracado, retido e seguro, no hospital”. Esta é a grande mudança: o embarque, a partir de então, será para um único lugar: o internamento. A desordem da nau dos loucos, com seus múltiplos personagens, encontrará o frio ordenamento homogêneo do asilo.

A loucura que antes, simbolicamente, possuía seu próprio barco, anuncia agora o naufrágio da razão. É uma enorme mudança de percepção, percebem? Se antes ela circulava e criticava, ameaçava e zombava, agora ela estará presa, contida, domesticada. É uma mudança radical. Mas é como afirmamos no começo, a loucura guarda pouca semelhança com seu passado. E mesmo sendo difícil escutá-la, é preciso ouvir sua história abafada pelas internações.

Texto da Série:

Foucault – História da Loucura

Curso Online baseado nesta série

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Jayro Schmidt
Jayro Schmidt
2 anos atrás

Oportuna a síntese para se pensar sobre a loucura como, também, impulso da razão. A nau dos insensatos (porque levava os loucos para grandes distâncias e que Foucault considerou como o primeiro “tratamento médico” da loucura, ou seja, o banimento), se transformou em um dos grandes temas da arte, especialmente da literatura que culminou com “O barco bêbado” de Rimbaud, que não deixou de figurar seu poema como sendo do mar. Depois deste “tratamento”, e depois de muito tempo, o outro tratamento tudo replicou com o agravante do encarceramento.