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Para os epicuristas, as sensações são anteriores à razão, elas não possuem palavra nem memória. Sentir é ser tocado pelo mundo. O momento desse contato produz uma evidência irrefutável no corpo: sentimos frio, calor, sabor, odor e outras sensações que nos chegam a todo momento. Nesse ponto, não há falsidade, não há erro, pois não há nenhum juízo produzido sobre essas sensações primeiras. Porém essas sensações puras não permanecem dessa maneira por muito tempo.  

A sensação é o começo do conhecimento, mas conhecer é mais do que sentir, porque seres humanos e outros animais interagem com as sensações de forma diferente conforme elas se repetem. A partir de uma síntese das experiências repetidas, o pensamento entra em jogo e Epicuro chama isso de pré-noções, em grego, prolepsis. 

Segundo Diógenes de Laércio, a prolepsis é uma espécie de capacidade de apreender algo que se encontra em nós como frequentemente se apresentou do exterior. É uma imagem mental que pode ser chamada à mente, uma noção geral que formamos a partir da repetição da experiência. Ele escreve o seguinte: “Tão logo a palavra homem é pronunciada, imediatamente se pensa, em decorrência da pré-noção, em sua imagem, que provém de sensações anteriores” (Diógenes de Laércio, Vida e Doutrina dos Filósofos Ilustres,  X, 33)

Retemos traços do mundo ao nosso redor que persistem e se repetem. Pela repetição, somos levados a pensar e sentir de uma maneira similar em face de sensações repetidas. Com alguns cuidados, também podemos chamar este conceito de hábito, mesmo sabendo que essa palavra foi mais usada na modernidade. Autores como Montaigne e Hume conheciam muito bem a filosofia epicurista. 

Em resumo, a pré-noção refere-se à capacidade de formar imagens das coisas que sentimos repetidas vezes. Percebam que dessa capacidade dependem inteiramente a linguagem e a memória. Epicuro considera que as palavras são invólucros sonoros das imagens mentais, formadas por um acréscimo que os seres humanos colocam àquilo que sentem. As pré-noções, poderíamos até dizer pré-conceitos, antecipam a experiência, esquematizando-a. Por isso, Epicuro diz para tomarmos cuidado com as palavras e opiniões, porque elas são apenas convenções. 

Reconhecemos um animal de quatro patas, que late e abana o rabo pelo nome de cachorro, mas esse nome não pertence à sensação de ver um cachorro. Tivessem nos dito repetidas vezes que aquilo era um hipopótamo e o chamaríamos por este nome. Assim, os nomes são produtos de um acordo entre sensações e pré-noções de pessoas diferentes. Fica claro que essas convenções têm limites e não podem representar tudo que as sensações provocam em cada ser, pois os nomes são formados pela diferente natureza dos homens, enquanto estão sujeitos a afecções particulares.

Assim começam a surgir os primeiros problemas do conhecimento. Epicuro diz que nem todas as pré-noções encontram fundamento nas sensações. A partir do momento em que formamos essas imagens mentais, começamos a misturá-las de forma tal que, se nos descuidamos, perdemos completamente as primeiras sensações que a formaram. Embora centauros não existam na natureza, nós somos capazes de imaginar cavalos meio humanos a partir das imagens separadas que formamos deles.

É preciso captar o que está subentendido pelos sons vocais para, ao nos referirmos a isso, termos como decidir sobre o que é matéria de opinião – quer uma pesquisa, quer um impasse -, e para que tudo não seja incerto para nós, por termos vocalizações vazias e demonstrações ao infinito. É necessário, de fato, que para cada som vocalizado, a primeira noção seja visualizada sem que careça de demonstração, se é que devemos dispor daquilo que é referido em matéria de opinião, pesquisa ou impasse.”

– Epicuro, Carta a Heródoto

Como as imagens que formamos das coisas, seja por meio das palavras seja em pensamento, não representam exatamente aquilo que as coisas são, precisamos tomar cuidado com elas. O filósofo age para reduzir o desacordo que existe entre as sensações e as pré-noções. Esse é um dos poucos pontos em comum com os estoicos: é sábio aquele que remete novamente as palavras àquilo que elas de fato representam, não deixando a imaginação formular livremente opiniões e juízos.

Um exemplo: vejo uma pessoa ao longe, imagino que ela seja minha amiga. Por quê? Ora, ela anda como minha amiga, se veste como minha amiga e está em um lugar que minha amiga frequenta. Levanto os braços e grito “Oi, Fulana!”, mas ao me aproximar, percebo que não é uma pessoa conhecida. Faltavam-me informações e minhas pré-noções me fizeram acreditar em algo que não era a realidade. As sensações não estavam erradas, o erro está naquilo que acrescentei a elas ligando-as à ideia de Fulana.

Este exemplo é bastante inofensivo, mas quantas vezes não cometemos erros de juízo ao não discernir aquilo que de fato se apresenta pelas sensações e aquilo que imaginamos que acontece? Importante notar a preocupação epicurista em criticar a concepção de deuses punitivos aos quais devemos obediência. Um raio é apenas uma manifestação sensorial e não a expressão de um deus insatisfeito com nossa conduta.

Nosso esforço em extrair conclusões conforme a natureza é justificado na medida em que percebemos que o erro está em nós e que, do erro, facilmente passamos a sentir dores desnecessárias. Quando insistimos em ideias contrárias à natureza, formamos práticas avessas ao prazer e à felicidade. Ajustar os juízos em função das sensações não refutáveis é o núcleo da epistemologia epicurista e leva diretamente à Ética: o sábio regula suas ideias em função da ampliação dos prazeres.

Texto da Série

Epicuro – Cânonica

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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