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Podemos dividir a filosofia de Epicuro em três partes fundamentais e caracterizar cada uma delas: na canônica, o empirismo; na física, o atomismo; na ética, o hedonismo. Por mais estranho que pareça, a física e a canônica são peças fundamentais para a ética, pois segundo Epicuro apenas o conhecimento adequado da natureza é capaz de diminuir os medos irracionais que impedem a fruição dos prazeres simples.

A maior fonte de dores da alma é o medo. Ora, se boa parte dos nossos medos são fruto da ignorância em relação à natureza, então faz sentido que sua compreensão nos torne mais capazes de ser felizes. Por isso, o esforço de Epicuro é, antes de mais nada, desenvolver na física um conhecimento seguro o suficiente ao qual se possa recorrer como anteparo quando somos afetados por temores.

Partindo de Empédocles, os antigos pensavam que a realidade se constituía de quatro elementos. Ou seja, tudo que existia abaixo da esfera lunar era composto por terra, fogo, água e ar. Isso significa que de um lado existe a matéria, feita desses quatro elementos primordiais, e do outro lado a forma, que os elementos assumem no tempo e no espaço. 

Acontece que, desde o início dos tempos, os elementos eram simples, imutáveis e eternos, assim como as formas, também eternas e imutáveis. A questão é que a junção entre matéria e forma era mutável e efêmera, desfazendo-se após algum tempo. 

Apesar de não parecer, há uma hierarquia: a forma prevalece sobre os compostos da matéria. Esta hierarquia é muito importante para Platão e Aristóteles: os elementos estão em constante devir, enquanto a forma é perene, ou seja, a forma é superior à matéria. Para eles, é a forma que ordena a matéria caótica.

Para Epicuro, entretanto, a cisão entre matéria e forma não faz sentido. Tudo que as sensações nos comunicam é material, as formas não são senão conceitos da nossa imaginação. Além disso, não é preciso multiplicar desnecessariamente o número de elementos primordiais, basta um tipo primordial para produzir uma diversidade enorme de coisas por variações quantitativas, de grandeza e peso.

Assim, Epicuro se filia à tradição dos atomistas Demócrito de Mileto e Leucipo de Abdera. A palavra átomo vem do verbo grego tmnô, cortar, dividir, mais o prefixo de negação a. São os não-cortáveis, ou seja, elementos que não podem ser divididos. Esses pensadores afirmam que o processo de fragmentação da matéria não pode ir ao infinito, pois isso resultaria em nada, tornando as coisas muito frágeis.

Na filosofia de Epicuro, os átomos tomam o lugar das ideias de Platão e das formas de Aristóteles. São eles que são eternos, imutáveis, indivisíveis e incorruptíveis em sua teoria naturalista. O que isso quer dizer? Simples, que os átomos são sempre os mesmos, existem desde sempre e para sempre continuarão existindo. A diferença é que o átomo não é uma abstração da realidade, não é um tomar forma, ele já é toda a matéria que existe.

Com sua física atomista, Epicuro possui ferramentas para enfrentar o hylemorfismo (a teoria da matéria (hýle) e da forma), que nos leva para em direção a abstrações transcendentes que mais confundem do que explicam. Não é a forma que determina a matéria, são os átomos que assumem uma determinada forma provisória. A primazia da ideia sobre a realidade se despedaça no ar. 

Além dos átomos, que formam tudo o que conhecemos, há apenas uma coisa: o vazio, também chamado de lugar ou espaço. O que comprova a existência dos átomos? A experiência das partículas voando em um raio de sol, por exemplo. O que prova a existência do vazio? O movimento, pois se tudo fosse pleno, absolutamente denso, não haveria deslocamento das partículas, nem interpenetrações entre materiais diversos. Todas as coisas são feitas de matéria e vazio em diferentes proporções.

“O universo está constituído de corpos e de vazio. Que os corpos existem, a sensação o atesta em toda ocasião, e é necessariamente em conformidade com ela que fazemos, pelo raciocínio, conjecturas sobre o invisível…. Se, por outro lado, não houvesse o que chamamos de vazio, o espaço ou a natureza impalpável, os corpos não teriam onde se localizar nem onde se mover; é, porém, evidente que se movem”

– Epicuro, Carta a Heródoto

Para os epicuristas, o átomo tem um peso e se move verticalmente no vazio e, dados pequenos desvios, acabam por chocar-se entre si. É assim que se formam os corpos mais complexos, por meio de um agrupamento entre átomos que entraram em contato e permaneceram juntos. A vida complexa, incluindo a dos seres vivos, evoluiu do choque entre partes simples e eternas.

Os atomistas apresentam uma analogia para mostrar como são possíveis infinitas combinações a partir de apenas um elemento: as combinações de átomos variam em diferentes formatos (A difere de N), mudanças de ordem (AN difere de NA) e de posição (N de lado vira Z). Some-se a isso a variação no número de átomos agregados em um corpo e o número de possibilidades resultante tende ao infinito.

A física epicurista começa com os átomos, mas não termina aí. Ele conhecia bem as críticas de Aristóteles a Demócrito e por isso se afastou da concepção fenomênica quase cética deste e postulou uma ideia de desvio indeterminado no seio da materialidade, assuntos que trataremos em um texto posterior.

O que nos interessa na física epicurista é o fato de que, através de explicações puramente mecânicas, Epicuro consegue o suficiente para recusar concepções de natureza que propiciavam o medo. Se tudo é formado apenas por átomos e vazio, então não há nenhum princípio mágico que altere o curso da matéria, dispensando as explicações que recorrem aos deuses para pensar a natureza.

Texto da Série

Epicuro – Física

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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