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Eis a abertura do livro Tratado de Emenda do Intelecto:

Desde que a experiência me ensinou ser vão e fútil tudo o que costuma acontecer na vida cotidiana, e tendo eu visto que todas as coisas que me preocupavam, me afligiam ou que eu temia não continham em si nada de bom nem de mau senão enquanto o meu ânimo é que se deixava abalar por elas, resolvi, enfim, indagar se existia algo que fosse um bem verdadeiro e comunicável, e através do qual, rejeitando tudo o mais, o ânimo fosse afetado. E mais ainda, se existiria algo que, achado e adquirido, me desse para sempre o gozo de uma alegria contínua e suprema

– Espinosa, Tratado de Emenda do Intelecto, §1

Espinosa estava cansado da vida cotidiana vã e fútil. Ele via a existência passar e começava a se incomodar com a maneira como as pessoas buscavam ser felizes e realizadas. Nada disso fazia sentido para ele. “O entendimento do ser humano está doente”, ele diria, “por isso elees vivem perdidos”. Pensamos mal, ou mal pensamos, e por isso vivemos mal, ou mal vivemos. Enfim, somos como sonâmbulos, andando sem saber para onde vamos, batendo a cabeça contra a parede achando que lá está a porta. Afinal, não seria surpresa se nesta situação simplesmente caíssemos pela janela.

O Tratado de Emenda do Intelecto é a tentativa de Espinosa de compreender o que estamos fazendo de errado. Emendar significa corrigir, ora, mas o quê? Parece ter alguma coisa errada com a maneira como pensamos. E se há alguma coisa errada com o nosso modo de pensar, precisamos nos emendar o mais rápido possível. E a melhor maneira de começar, para Espinosa, seria corrigindo o intelecto. Este é o melhor primeiro passo: começar com uma admoestação, dizendo, “Ei! Vocês estão fazendo isto errado! Não, não é este o caminho correto, não é por aí que vocês encontrarão a felicidade!”

Em suma, o Tratado de Emenda do Intelecto é um discurso de conversão. Eis o que ele diz:

  1. Se a experiência da vida cotidiana nos ensina que os caminhos trilhados comumente para o contentamento, o florescimento e a realização são vãos e fúteis, ou seja, não levam onde prometem levar. E se pelo contrário, estas honras, riqueza e prazeres buscados mais atrapalham do que ajudam;
  2. Então precisamos fazer uma reavaliação de tudo aquilo que acreditávamos ser o bom e o ruim, o certo e o errado. Uma reavaliação dos valores (lembrando Nietzsche). Seriam as riquezas, honras e poder realmente o caminho correto para ser feliz? Parece que não…
  3. Logo, torna-se necessário começar a filosofar. O pensamento de Espinosa começa com este incômodo e uma indagação: “É isso o melhor que eu posso desejar?”, “Será que não existe um Bem melhor e mais verdadeiro?”, “Existiria um bem que nos afetaria com ainda mais alegria?”

“A filosofia torna-se essencialmente um ato de conversão. Essa conversão é um acontecimento provocado na alma do ouvinte pelo discurso de um filósofo. Ela corresponde a uma ruptura total com a maneira habitual de viver” – Pierre Hadot, Exercícios Espirituais e a Filosofia Antiga

O Filósofo é aquele que se converte. Pode parecer estranho, mas é isso mesmo. A própria etimologia da palavra prova isso: con-vertere vem do latim e significa se inclinar em uma nova direção, sair da direção que se estava seguindo anteriormente. Esta palavra foi cooptada pela religião, mas serve perfeitamente para nós. O Filósofo é aquele que pensou e, por pensar profundamente uma questão, encontrou novos caminhos. Ele quer seguir este novo caminho e quer mostrar a outras pessoas que outra direção é possível.

Mas antes de seguir nesta nova direção, Espinosa para na porta e se pergunta: “Seria prudente deixar esta vida antiga para trás?”. A pergunta é legítima, pois até mesmo Buda fez isso, quando abandonava a sua vida como nobre, antes de se tornar um monge mendicante. Isso é compreensível, afinal, as honras e riquezas trazem algum tipo de comodidade. Mas a pergunta, desde o início, é o quanto a felicidade está relacionada com estes prazeres. Afinal, não podemos negar, são prazeres, e Espinosa não se preocupa em provar o contrário. O problema é que quem busca estes prazeres dificilmente se preocupa em procurar por outros.

Sendo assim, o que se coloca são duas alternativas: Ou continuamos perseguindo os prazeres cotidianos ou seguimos este novo caminho e modo de vida. Em outras palavras, ou mantemos estes bens comuns, ao alcance de todos, mas incertos, porque frágeis e inconstantes, ou saímos para procurar por um bem novo, ainda incerto, mas possivelmente muito maior e eterno. A pergunta é: vale a pena?

Qual o argumento de Espinosa para nos converter? Ora, estes prazeres comuns trazem consigo muita inconstância, por isso parecem vãos e fúteis. E mais, os males que os habitam são frequentes: as riquezas trazem o medo de ser roubado, as honras trazem o receio de perder a fama, o poder traz sempre consigo o medo de uma conspiração, até mesmo os prazeres corporais também trazem consigo muitos desprazeres, vide a gula e o abuso de álcool.

Ou seja, se buscados como fins em si mesmos, não encontraremos ali este sumo bem. Se estamos procurando por um outro prazer, maior, mais constante e mais puro que todos os outros, então não podemos mais continuar seguindo pelo mesmo caminho. Está claro como os prazeres do cotidiano são vãos e fúteis, e como  eles certamente não darão aquilo que procuramos.

A conclusão de Espinosa se mostra através de uma conclusão lógica:

  • Se os bens aparentemente certos, na verdade são incertos;
  • E o bem maior aparentemente incerto, parece ser o mais certo de todos;
  • Então não há alternativa senão se converter.

A partir de então, buscando seguir este novo caminho, Espinosa faz duas recomendações:

  1. “Dos prazeres somente gozar o quanto basta para a consecução da saúde”, não será necessário mais do que isso, afinal, não encontraremos a felicidade ali;
  2. “Por último, procurar no dinheiro somente o necessário para o sustento da vida e da saúde”, o dinheiro só serve se nos ajudar a continuar nesta busca, caso contrário, pode atrapalhar.

Vemos aqui como Espinosa foi marcado por sua criação religiosa. Ele, de certa forma, continua perto destes ensinamentos. Mas é à sua maneira que ele acredita em uma espécie de Salvação, uma espécie de Comunhão com este Deus-Natureza. 

A conversão começa com este convite: deixar uma vida de excessos, deixar uma vida de busca de prazeres fáceis, aqueles à disposição e apresentados como o único caminho possível, e procurar por um outro caminho, mais seguro, mais certo, e com uma recompensa muito, muito maior (vide a Beatitude e a Liberdade).

Em suma, todo filósofo espera de seu ouvinte uma conversão, não no sentido religioso, mas sim no sentido filosófico, uma nova forma de pensar que leve também a uma nova forma de viver. É por isso que, afirma Espinosa, mesmo os filósofos, aparentemente tão humildes, fazem questão de assinar seu nome no frontispício de seus livros, eles esperam convencer seus leitores de que têm algo a oferecer, e não poderiam estar mais certos.

Texto da Série:

 

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Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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EElivete C. de Andrade
EElivete C. de Andrade
3 anos atrás

Olá. Que preciosidade estes escritos e a forma que o autor expressa sua conversão.
Amei e estou cada vez mais encantada… Abçs

luiza
luiza
2 anos atrás

to apaixonada pelos seus textos, mas ainda estou engatinhando nesse universo intelectual… as vezes preciso procurar o significado das palavras… obrigada por compartilhar tudo isso.