O filósofo é alguém estranho, não tentaremos provar o contrário. Ele viu algo, sentiu algo, pensou algo que o mudou radicalmente. Talvez ele tenha descido demais nas próprias entranhas ou subiu demais em direção às estrelas. Enfim, o Filósofo é estranho, bizarro, perigoso, ele é o sem-lugar (do grego, á-topos).
O filósofo se converteu, seguiu uma direção nova, soltou-se dos grilhões que o prendiam à caverna. Subiu, sentiu a luz do sol queimar seus olhos desacostumados com a luz da Razão. Então, ele entrou em comunhão e todo este conhecimento o inundou e o transformou.
Sim, isso torna o filósofo alguém desacostumado com a vida cotidiana, um chato, nós sabemos. Mas ele decidiu voltar, ele tem uma missão, compartilhar esta comunhão conosco. Ora, ele poderia ter ficado lá em cima, no reino das ideias. Poderia, mas isto não faria dele um filósofo, faria dele um erudito, alguém que possui certo conhecimento e se recusa a compartilhá-lo (ou só o faz com o intuito de humilhar o outro).
Este é, portanto, o fim ao qual tendo [me inclino, me converto]: adquirir uma natureza assim [sumo bem] e esforçar-me para que muitos a adquiram comigo; isto é, pertence também à minha felicidade fazer com que muitos outros entendam o mesmo que eu, a fim de que o intelecto deles e seu apetite convenham totalmente com o meu intelecto e o meu apetite”
– Espinosa, Tratado de Emenda do Intelecto, §14
O filósofo está interessado em compartilhar aquilo que adquiriu. Espinosa quer o sumo bem, a alegria, o florescimento, mas qual seria a graça de adquirir isto sozinho? Nenhuma! Até mesmo o antissocial Zaratustra se cansou da sua sabedoria e desceu a montanha para derramar seu mel.
Aqui novamente vemos um Espinosa marcado por sua criação judaica, ele age como uma espécie de profeta, não é? Ele viu algo, ele teve acesso a algo assombroso, sublime, algo a que ninguém mais teve acesso! E o que fazer com isso? Existe apenas uma única resposta, passar adiante, contar aos outros o que ele viu! Não é isso que os profetas fazem? Não foi exatamente assim que procederam Zaratustra, Buda, Jesus, Moisés e outros?
Pois bem, Espinosa diz, este Deus que eu observei é o mesmo para todos! Ele é uma substância infinita que se manifesta como a própria natureza (eles são a mesma coisa: Deus sive natura). Ora, se a natureza é a mesma para todos, então Deus é comunicável. Ele é a própria substância una que se divide em uma multiplicidade de coisas.
Aqui ficamos desconfiados, aprendemos com Nietzsche que Deus e comunicação são conceitos enganosos: primeiro, deus está morto e é bom que continue assim; segundo, comunicar é tornar comum a dois ou mais. Ou seja, a comunicação torna tudo singular, raso, comum. Comunicar é a melhor maneira de perder algo, perder a originalidade. Deus e a comunicação servem apenas à gregariedade, e aquilo que é comunicável é raso, irrelevante.
Concordamos com Nietzsche? Sim, claro! Mas não aqui, não neste momento! Espinosa não apenas afirma que o supremo bem existe, mas afirma também que ele pode ser conquistado nesta vida, por todos que procurarem por ele. Este sumo bem comunicável não é o dos substantivos que perdem o singular para enquadrá-los no universal das categorias. Muito pelo contrário, Espinosa fala de Leis Divinas que se expressam nas coisas fazendo-as singulares.
Exemplos: é a lei da gravidade que faz cada estrela ser do jeito que é; é a lei da evolução que cria animais e plantas cada vez mais diferentes uns dos outros. Compreender estes funcionamentos é compreender o mundo. Compreender é entender, apreender, a maneira como as coisas se relacionam para serem singulares como são. E o melhor é: podemos passar estes conhecimentos uns aos outros, eles são comunicáveis.
Espinosa está dizendo algo muito ousado: a maneira de Deus se expressar é não apenas compreensível, mas também comunicável! É algo que todos podem acessar, não é lindo isso? Não é para um grupo restrito, não está reservado para alguns poucos escolhidos. Os profetas da razão não são os únicos a ouvirem a voz de Deus, qualquer um que se dedicar pode ouvi-la também! Basta compreender a maneira como a natureza se expressa.
Claro, isso não significa que todos vão se dedicar a essa busca, a essa compreensão. Afinal, a grande parte das pessoas está preocupada com bens muito mais incertos: riquezas, poder, fama, prazeres carnais. E tudo bem, se isso lhes serve, que assim seja. Mas alguns estão ansiosos por pensar as coisas que Deus pensa, se encontrar com Deus nas menores bactérias e nas maiores Galáxias.
E não apenas encontrar, mas também ensinar este caminho a outros. Deus é Comunicável. O Sábio espinosista volta para a caverna e se propõe a ensinar tudo o que aprendeu, ele parece gritar em determinados momentos, procurando mostrar que a vida pode ser diferente. Ele nos instiga a nos converter, a nos salvar e a seguir novas direções.
O sábio é alguém que aprendeu a se comunicar com Deus, que “ouve Deus” se comunicando com ele. Além disso, o Sábio não é alguém inacessível, não é alguém escolhido, não está acima dos outros. Tudo torna-se comunicável, basta um esforço da razão.
Compreender é difícil, passar isso para os outros pode ser ainda mais complexo! Por isso discordamos de Nietzsche, comunicar não é tornar comum, não é tornar homogêneo, é mostrar a grandiosidade das relações entre as coisas, é encontrar a maneira pelas quais as coisas se relacionam e saber como expor isso para o maior número de pessoas possível. É encontrar a maneira pela qual Deus se reparte no mundo e fazer com que outros vejam esta manifestação do divino em cada lugar.
Comunicar é mostrar como uma unidade se expressa de maneira múltipla, inclusive em nós; é mostrar como a multiplicidade possui na verdade uma unidade comum. Comunicar é tornar patente que a verdade eterna se expressa no singular de cada vida.
Eis o Espinosismo, ele é ao mesmo tempo uma conversão para um reino maior de um conhecimento mais qualificado do mundo, uma comunhão com o todo e um esforço de comunicação destas verdades tão belas quanto potentes, mas, graças a Deus (com o perdão do trocadilho), comunicáveis.