Espinosa vislumbrou soluções para o problema mente-corpo que a neurociência só agora deu conta”
– Antonio Damásio, Em Busca de Espinosa
A questão de como a mente e o corpo se relacionam é de longa data. E o número de soluções que já foram dadas é enorme. Neste sentido, Espinosa é apenas mais um dos pensadores que procuraram responder a esta questão, mas, para nós, sua explicação é muito melhor que a de seus antecessores.
Sua solução inicial é conhecida: mente e corpo não interagem, no sentido de um influenciar e causar o outro. Em outras palavras, se são duas coisas de qualidade diferentes (uma mental e a outra material) não podem afetar uma à outra. Afinal, mente faz parte do atributo pensamento e o corpo faz parte do atributo extensão.
Sendo assim, podemos dizer: mente e corpo estão em correlação e correspondência. Um se reflete no outro. Esta é a resposta que tanto impressionou o neurocientista Antonio Damásio, que se dedicou a demonstrar neurologicamente a solução espinosista.
Os processos mentais se alicerçam no mapeamento do corpo que o cérebro faz”
– Antonio Damásio, Em Busca de Espinosa
O que é a mente? É a capacidade de pensar, a mente é um modo do atributo pensamento. Mas a mente pensa o quê? Ora, a mente pensa seu corpo em ato. Isso significa que a linguagem da extensão do modo corpo (seus movimentos e repousos) se traduz em uma linguagem na mente (pensamentos e sensações).
O objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, ou seja, um modo definido da extensão, existente em ato, e nenhuma outra coisa”
– Espinosa, Ética II, prop. 13
Exemplo: A condição de pouca glicose no sangue do corpo se traduz em uma linguagem da mente, “estou com fome”; a fadiga do corpo se traduz em uma linguagem da mente, “estou cansado, preciso dormir”; e assim por diante.
Se o objeto inicial da mente é o corpo, então nossos pensamentos são inicialmente pensamentos do corpo; deste modo, acabarmos com nossa capacidade de sentir, de fazer esta correlação, seria um desastre, já que é a nossa capacidade de sentir e mapear o corpo que nos permite pensar!
Podemos ir mais longe: sem corpo não há pensamento! Nós somos um modo da substância que se manifesta necessariamente nestes dois atributos: pensamento e extensão. Logo, não há mente sem corpo e vice-versa.
Aliás, este seria o famoso “Erro de Descartes” (outro livro de Antonio Damásio), pois a nossa capacidade de pensar racionalmente e tomar decisões envolve a capacidade da mente olhar para seu corpo e pensar como ele está e imaginar como ele se sentiria se tais ou tais decisões fossem tomadas.
A mente consciente corresponde à manifestação do atributo pensamento, que está correlacionada à manifestação de um corpo existindo em ato. Mente e corpo como modos de manifestação da natureza. Um é a manifestação do outro, um espelha o outro.
Pois bem, isso é paralelismo! Se os processos mentais são um mapeamento do corpo, então um é o reflexo do outro. Um é o modo em sua versão corporal e o outro é o modo em sua versão mental. Um é o corpo mapeado em pensamentos e sensações e o outro é o corpo na versão extensiva. A mente “reflete” necessariamente o corpo, uma relação íntima, o que acontece em um acontecendo também no outro.
Isso torna mente-corpo um conjunto unificado, que se manifesta de duas maneiras. Mesma ordem e concatenação, mas duas expressões.
Certo, o conceito de Paralelismo é sedutor porque ajuda a explicar e entender muitas coisas. Mas precisamos tomar cuidado aqui, porque ele também pode ser redutor de algo que é muito mais rico.
Seria então a natureza apenas uma repetição da mesma coisa em cada atributo? Não, precisamos tomar cuidado aqui. A ideia de paralelismo pode incitar uma busca contínua por tradução ipsis litteris, como se o código corporal A, B e C pudesse ser traduzido perfeitamente no estado de pensamento X, Y e Z.
A mente é bem mais que a ideia imediata de um corpo. Ou seja, um estado mental é muito mais que determinada quantidade de neurotransmissores em uma fenda sináptica. Não é simples fazer uma tradução entre mental e corporal. Não é possível explicar o ser humano apenas por sua fisiologia (os behavioristas metodológicos aprenderam isso da pior maneira).
Conclusão: Se olharmos apenas para o corpo, alguma coisa ficará de fora! Afinal, somos mente e corpo! E diz Espinosa: “cada um deles terá a autonomia de se expressar à sua maneira”. Isso que é importante. O mesmo modo expressa seu atributo à sua maneira. Não é uma espécie de conversão de igual para igual, como uma quantidade de dinheiro em Real ou Dólar. Não é uma tradução de uma língua para a outra. A filosofia de Espinosa seria pouco interessante se fosse só isso.

Emoções supostamente explicadas por neurotransmissores
Por isso, o paralelismo é uma palavra que exige cuidado! Aliás, é um conceito que faz mais parte do pensamento de Leibniz que do de Espinosa. Mente e corpo não são paralelos como trilhos de um trem; eles são uma única e mesma coisa (modo da substância) se manifestando de maneira qualitativamente diversa (pensamento e extensão), e isso pode acontecer de maneira às vezes muito complexa.
Isso porque a mente constrói ideias sobre suas ideias, ela se desdobra em si mesma de maneiras que apenas uma compreensão dos pensamentos pode dar conta. Para Espinosa, precisamos compreender a maneira como pensamos, e não daremos conta de explicar isso extensivamente.
A mente e o corpo são dois mundos diferentes, se manifestando na mesma casa. São duas perspectivas da mesma coisa. E às vezes entenderemos melhor o que está se passando com aquele modo olhando pela perspectiva da extensão e às vezes pela perspectiva pensamento.
Sempre respeitando o princípio da “mesma ordem e conexão”, mas nunca reduzindo uma à outra. Há algo que é do campo do corpo, sua capacidade de afetar e de ser afetado. E há algo que é do campo do pensamento, que é a sua capacidade de pensar, traçar conexões, relacionar e compreender o mundo.
Enfim, podemos caracterizar a filosofia de Espinosa como um paralelismo não reducionista, onde os dois atributos nos quais os modos se expressam podem, devem e merecem ser compreendidos em profundidade.