A ética epicurista se constrói com uma noção de prazer como princípio e finalidade. Além de ser bom, o prazer é o bem, ou seja, é o móvel da ação humana tanto quanto o objetivo dela. No entanto, nem todos os prazeres conduzem à felicidade, assim como nem todas as dores a atrapalham. Essa qualificação dos prazeres e dores se dá por causa de uma ideia que conduz, de maneira geral, toda a filosofia helênica: a eudaimonia.
Eudaimonia é a palavra grega que costumamos traduzir por felicidade. Composta pelo prefixo eu- que significa: de origem nobre, algo bom ou justo, algo benevolente, em boa ordem, boa causa, bondade ou perfeição; e pela palavra daimonia, derivada de daímon, ligada às relações entre os homens e os deuses: inspiração, voz interior, prodígio, presságio, bem como espírito, gênio. Então, Eudaimonia fala da boa disposição de espírito, da boa relação com as divindades, da harmonia com uma voz interior, da perfeição de caráter.
Em cada escola antiga, essa palavra ganha contornos específicos, sendo a definição de Aristóteles a mais famosa: florescimento, na medida em que a concepção de felicidade aristotélica é a da atualização das potencialidades de um ser. Aliás, a teologia aristotélica, assim como a epicurista e a maioria das visões dos filósofos antigos, considera os deuses perfeitos e estáveis, contrariamente às versões míticas de deuses passionais, punitivos e conspiratórios.
A eudaimonia epicurista é hedonista, isto significa dizer que a felicidade para Epicuro é proposta em função dos prazeres. No entanto, falar em eudaimonia na antiguidade é falar na conquista da felicidade como algo constante que se traduz em uma vida bem vivida. Então, esse hedonismo eudemonista não trata de episódios de prazer ocasionais, mas de uma tentativa de torná-los perenes, duráveis e constantes. Como proposta para a felicidade, os epicuristas apostam nos prazeres equilibrados, que chamam de catastemáticos, cuja fonte é dupla: a aponia e a ataraxia.
Aponia significa ausência de dor. Pode parecer estranho, mas Epicuro diz que a ausência de dor é positiva, ou seja, não sentir dores já é uma forma de prazer. A aponia surge principalmente a partir da satisfação das necessidades naturais (fome, sede, calor, sono) e, desde que sejam mantidas as condições que as suprem, se prolonga em uma forma de prazer estável.
Uma pequena quantidade de dor não é um problema – afinal, é possível suportar a dor -, mas os prazeres com um custo muito alto de dor não fazem sentido, pois nos tiram do caminho de nossa própria natureza. A dor é uma afecção do corpo, evidente por si mesma, sem necessidade de elaboração racional. Quando sentimos muitas dores, tornamo-nos incapazes de sentir prazeres. Epicuro nos fornece alguns exercícios para lidar com a dor.
Primeiro, a imaginação. Nós humanos temos uma grande capacidade de transformar a experiência em imagens mentais (procedimento que os epicuristas chamam de prolepsis) e, graças a isto, podemos usar da memória e da linguagem para enfrentar as dores. Imaginar um prazer passado ou antecipar um prazer futuro, tentando torná-los presentes, são boas maneiras para tentar enganar as dores.
Em segundo lugar, ele propõe um argumento racional. As dores podem ser fracas ou fortes, curtas ou longas. Epicuro diz que, em geral, as dores intensas duram pouco, então é possível pensar que elas passam rápido; e que as dores fracas duram muito, mas é possível pensar que elas são suportáveis. Ou seja, não há dor para a qual não tenhamos algum pensamento que ajude a combatê-la.
É possível suportar a dor por meio de exercícios espirituais que diminuem essa afecção. Por outro lado, segundo os epicuristas, o medo é muito pior que a dor, pois é afecção do espírito, nos deixando muito mais vulneráveis e incapazes de recursos no momento em que o sentimos. É por isso que a eudaimonia é conquistada quando atingimos a ataraxia, isto é, a ausência de perturbação na alma.
Ao contrário da dor, que se origina no corpo, o medo se origina na alma. O ânimo, concentrado no peito, lida com os afetos e as ideias. Quando é tomado por imagens de incerteza, transfere essa instabilidade para a alma, e consequentemente, para todo o corpo. Quando o ânimo é assim percutido, repercute no corpo, toda a ânima sente, fazendo do medo um estado mais perigoso do que o da dor.
“Quando a mente é movida por medo mais veemente, vemos a ânima toda nos membros sentir igualmente, com palidez e suores tomando o todo do corpo, língua quebra e a voz esvanece, obnubilam-se os olhos, nossos membros sucumbem, ouvidos ressoam sozinhos e, finalmente, vemos os homens caídos de medo pelos terrores do ânimo; isso a fim de que saibam que a ânima está em conjunto com o ânimo, ela que, quando percutida pelo ânimo, repercute no corpo”
– Lucrécio, Sobre a Natureza das Coisas, III, 152
Qual é a melhor maneira de lidar com o medo? Não é por meio da imaginação, mas pelo conhecimento. O estudo da natureza é o que nos prepara para lidar com o medo, seja dos deuses, seja da própria natureza. Assim, quando formos acometidos pelo medo, teremos todos os recursos do conhecimento para afastá-lo. O medo está relacionado a uma elaboração de imagens feita pelo ânimo por meio de opiniões vazias, mas passíveis de serem corrigidas para que a perturbação seja minimizada: quem sabe a causa de um raio, não teme que ele o atinja por vontade de Zeus, nem em um dia ensolarado.
Aponia e ataraxia são prazeres que crescem à medida que dor e medo diminuem; e quanto mais capaz de manter-se sem dor e sem medo, mais duradoura a felicidade. É simples, mas bastante desafiador, e é por isso que existe a filosofia, para auxiliar no prolongamento dos prazeres, combatendo a superstição por meio do conhecimento e propondo exercícios por meio da ética.
“O limite de magnitude dos prazeres é a supressão de todo sofrimento. Onde estiver o satisfeito e de acordo com o tempo que assim for, não há dor nem tormento, tampouco os dois juntos.”
– Epicuro, Máximas Principais, III
A eudaimonia proporciona a alegria, que para os epicuristas é uma elaboração do prazer pela alma. Assim como dores e medos se diferenciam pela maneira como afetam corpo e alma, prazer e alegria também se diferenciam. O prazer é sensorial, afetando corpo e alma de forma evidente e conjunta quando não há dor. A alegria não é apenas o prazer, mas uma atividade do pensamento que é criada por condições prazerosas, ou seja, a alegria é a expressão racional de uma condição prazerosa.
É assim que podemos requalificar os prazeres episódicos: não mais passageiros, pois conquistados a partir da ataraxia e aponia. Agora, são prazeres do movimento do pensamento, a filosofia; prazeres da relação com os outros, a amizade; prazeres do bom governo do corpo e da alma, a autarquia. Assim sendo, a eudaimonia é o fundamento para a variação dos prazeres catastemáticos e o desenvolvimento dos prazeres cinéticos.
Aqui surge uma outra questão: se a alegria remete a juízos, então ela não é evidente como os prazeres, e portanto pode ser falsa. Ou seja, podemos nos alegrar com coisas que não fazem sentido e, em última análise, desejar coisas que não fazem sentido. Concluímos assim que as alegrias também precisam ser levadas aos juízos verdadeiros e, consequentemente, aos prazeres, daí a necessidade de uma disciplina dos desejos.
Creio que há muito da Eudaimonia de Epicuro na falência da sociedade contemporânea. A busca incessante de prazeres, sobrepondo satisfações passadas e supostas satisfações futuras, que só existem no imaginário, ao contexto presente, que é fático, tem tornado as pessoas desconectadas da realidade e dependentes de sugestões psiquicas que aplaquem sua dores e sofrimentos.
O epicurismo é o contrário da busca incessante por prazeres. Se não fosse, sua ética ne poderia ser propriamente considerada Eudaimonia. Assim, não vejo relação entre epicurismo e falência da organização dos prazeres na contemporaneidade. Penso justamente o contrário, o estudo do epicurismo é uma forma de refletir sobre as inconsistências de nosso tempo nesse campo.