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Vivendo e aprendendo a jogar
Vivendo e aprendendo a jogar
Nem sempre ganhando
Nem sempre perdendo
Mas, aprendendo a jogar” – Elis Regina

Se a imediaticidade dos afetos não é o bastante para encontrarmos uma vida mais interessante, potente e realizada, qual é a via que Espinosa busca? O filósofo holandês pede ajuda à Razão. É pela mente que encontraremos caminhos e soluções que antes estavam escondidos.

Ou seja, podemos simplesmente dizer que a Razão oferece mais oportunidades de sermos felizes. Pende a balança mais para o lado da felicidade que da tristeza. E, em consequência, a felicidade nos oferece mais oportunidades de sermos mais racionais, e assim manter este estado de potência mais elevado por mais tempo.

Qual seria então a Tarefa da Razão? Primeiramente, consolidar as alegrias vividas passivamente. Aproveitar os momentos de contentamento para pensar: como eu cheguei aqui? Qual foi o caminho, a concatenação de causas e efeitos que me trouxeram até este momento? Tudo passa por estas perguntas que a razão faz em momentos de alegria!

A Razão quer compreender as propriedades necessárias das paixões alegres para as consolidar, compreendendo a maneira de (re)produzi-las no futuro, com suas próprias mãos, através de ações, e não na passividade das paixões.

Lembrando, nascemos impotentes, e o mundo não parece estar muito preocupado com a nossa alegria. Sendo assim, as alegrias que nós obtemos passivamente são muito poucas, isto se tivermos sorte, porque podem ser quase nulas. Ou seja, não parece ser uma boa ideia nos deixar levar pelo destino, porque percebemos que a fortuna, por si só, não nos reserva coisas muito boas.

Mas Espinosa ensina que não precisamos nos contentar com as migalhas que a sorte nos dá. Se as pretensões de felicidade não fazem parte do mundo, não estão reservadas pelo destino, elas fazem parte de nós, e muito! Nós queremos e tendemos para a felicidade, e aqui se abre o caminho da Razão, das ações e dos bons encontros.

Isto porque a tarefa da Razão, sua capacidade de pensar, é parte do nosso conatus, é uma das maneiras de expressarmos a potência divina. Ou seja, a Razão é um esforço para sair do campo da fortuna, é o esforço de pensar, um esforço do conatus, que procura deixar o campo da sorte e entrar no campo da ação. 

A sorte, dirá a Razão, é para os tolos, que não compreendem e vivem na ignorância, para aqueles que não podem fazer nada além de esperar e temer. Em outras palavras: a razão se esforça para encontrar as propriedades necessárias dos afetos e delas se apropriar. Compreender para sair da paixão e entrar na ação.

Quais as perguntas que a Razão faz neste processo?

  1. Qual a medida dos afetos?
    • O que gera alegria? O que gera tristeza?
    • Quais alegrias geram tristezas? 
    • Quais tristezas geram alegrias?
  2. Qual a coerência destes afetos?
    • É realmente isso que me gera felicidade?
    • Quais as propriedades desta alegria e desta tristeza?
    • O que exatamente neste encontro me gera alegria ou tristeza?
    • Onde, como e por que ela acontece?
  3. Qual a constância destes afetos?
    • Qual o tempo desta alegria ou tristeza?
      • Quanto tempo ela dura?
      • Com que força ela nos atinge?
      • Ela gera outros afetos no futuro?
    • Por que esta alegria é tão efêmera?
    • Por que esta tristeza é tão constante?
  4. Qual a conveniência destes afetos?
    • Em que momento eles se tornam excessivos?
      • Quando superam a capacidade do nosso corpo de ser afetado?
    • Qual a linha que separa a alegria e o prazer da dor e da tristeza?
  5. E, por fim, como aprender a produzi-los e reproduzi-los
    • Como fazemos para viver de novo aquela sensação?
      • Ou outras ainda melhores
    • Como fazemos para evitar aquela tristeza?
      • Ou não vivê-la nunca mais
    • Como fazemos para esta alegria ter menos tristezas?
    • Como fazemos para esta tristeza não me derrubar?

Espinosa dá à Razão a tarefa de moderar os afetos! Ela oferece outros afetos aos iniciais, os qualifica, os analisa e examina cuidadosamente. Tudo para alcançarmos a capacidade de darmos as nossas próprias medidas aos afetos. Este é, para o filósofo holandês o melhor caminho para não sermos arrastados pelas paixões como folhas ao vento.

Um afeto não pode ser refreado nem anulado senão por um afeto contrário e mais forte do que o afeto a ser refreado” – Espinosa, Ética IV, prop 7

Quando a Razão compreende melhor o que está acontecendo com seu próprio corpo, formando ideias mais adequadas, ela consegue oferecer novos caminhos. E mais, ela encontra boas medidas para os afetos! Não está mais refém de uma única maneira de afetar e ser afetada, a vida se torna maior, mais constante, mais coerente.

O desejo que surge da razão não pode ser excessivo.” – Espinosa Ética IV, prop 61

Onde está a razão ditadora? Ora, não existe mais! Afinal, a razão desceu ao nosso mundo, ela não precisa mais mandar, ela apenas mostra, demonstra, comprova, oferece, indica; sua nova função é pesar, avaliar, medir os afetos. Não é um mundo das ideias se sobrepondo a este mundo. É uma mente-corpo que aprende a viver melhor!

Este é o convite de um Espinosa racionalista, a razão deve aprender com os afetos, não detestá-los; deve aprender antes de mais nada a dar uma boa medida aos encontros que fazemos ao longo de nossa existência. Deve aprender a jogar o jogo dos afetos.

Espinosa ensina a não viver de maneira quase que inconscientemente a vida, nos ensina a pensar. Esta conquista da razão é lenta e exige paciência, começa no corpo, na imaginação, mas se concretiza apenas com o pensamento racional, mais refinado.

Em suma: a única salvação está na compreensão dos afetos. Uma atenção constante, uma evolução lenta e consistente. Com a ajuda da Razão, transformar pouco a pouco as alegrias fugazes em alegrias contínuas, as alegrias recheadas de tristeza em alegrias mais puras, mais intensas, mais potentes. Conquistar isso já seria uma espécie de salvação, não é? Mas por onde e como começar? Espinosa responderia: pelas Noções Comuns.

Texto da Série:

 

Ética

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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