Skip to main content
CarrinhoClose Cart

É preciso forçar as coisas e, por um ato de vontade, arrastar a inteligência para fora de sua casa”

– Bergson, A Evolução Criadora

Queremos largar o campo da inteligência inerte e entrar no campo da Intuição, onde velhos problemas se mostram inúteis. Queremos abrir o estreito caminho da racionalidade para encontrar o campo aberto da Duração, onde as soluções nem mesmo poderiam ser previstas, pois se criam em seu próprio ato. Queremos mergulhar cada vez mais fundo, observando cuidadosamente como o passado se move, se avoluma no presente, abrindo um futuro completamente novo. Não sabemos como a vida começou, mas sabemos como ela se move! Bergson dá um nome para este movimento, o chama de Elã Vital.

Indiquemos, desde já, o princípio de nossa demonstração. Dizíamos que a vida, desde suas origens, é a continuação de um só e mesmo elã que se dividiu entre linhas de evolução divergentes. Algo cresceu, algo se desenvolveu por uma série de adições que foram, todas elas, criações”

– Bergson, A Evolução Criadora, p. 46

Antes de mais nada, não podemos confundir o Elã Vital com qualquer tipo de energia mística. Estamos longe de falar de forças ocultas ou mágicas. Nada de duendes ou influência dos signos. Não é nada disso. Bergson foi acusado inúmeras vezes de um vitalismo esotérico, mas o filósofo francês não cairia em explicações baratas e imprecisas e não podemos deixar que sua filosofia se torne algo obscuro e enigmático. Como um bom alfaiate, ele recorta conceitos precisos, que deem conta de nossa realidade.

Por isso é tão importante entender seu conceito de Elã Vital. Ele pode ser definido como o entusiasmo da Duração, seu momento de maior contração e potência. Uma explosão vivaz que cria o extraordinário. Estamos no outro polo agora, o impulso não é mais encontrado do lado de fora, distendido, como força física; ele foi internalizado, adquiriu consistência e se movimenta por sua própria capacidade.

Uma impulsão única, inversa do movimento da matéria e, em si mesmo, indivisível. Todos os vivos se tocam e todos cedem ao mesmo formidável impulso”

– Bergson, A Evolução Criadora, p. 190

O Elã Vital pode ser simplesmente chamado de desejo de criação, capacidade interna de diferenciar-se, tomar as rédeas da situação. Mergulhar no mundo determinista e inserir nele o máximo possível de indeterminação! Entregar-se ao mundo finalista mas para inserir nele o máximo possível de outros caminhos. Fonte pulsante de geração contínua. Inconsciente produtivo. O jogo se inverte, a vida passa a ser uma maneira de agir sobre a matéria bruta. Seu movimento é de diferenciação de si mesmo, movendo-se pelo espaço.

Parece simples, mas é todo um mundo que se abre com este conceito. Na verdade, toda a filosofia de Bergson nos trouxe suavemente até aqui! Sua luta para recolocar os problemas trazendo o tempo não mais espacializado e quantitativo, morto, mas como acúmulo de passado extravasando futuro (veja aqui). Seu cuidado em conceituar uma memória imanente, que pressiona a percepção por desvios e declinações, como um espelho torto que busca o novo. Sua insistência em mostrar como o corpo é um ponto de indeterminação, que recebe estímulos pelos nervos aferentes e devolve estímulos pelos nervos eferentes, mas que, neste meio tempo hesita e insere indeterminação no ato.

Com efeito, todas as nossas análises nos mostram na vida um esforço para subir a encosta que a matéria desce […] É como que um esforço para reerguer o peso que cai”

– Bergson, A Evolução Criadora, p. 174

Pouco a pouco nos aproximamos do Elã Vital, como o outro lado que a inteligência, perdida no determinismo, não conseguia ver. Há uma tensão aqui, entre a vida e a matéria, uma arrastando a outra, quase que um embate, mas muito mais uma dança. Uma escalada talvez! Subindo a encosta, onde chegaremos? Não sabemos, eis a questão! Estamos falando de uma pura pulsão de vida, pulsão para o indeterminável! Uma vida que resiste à morte num esforço contínuo e criativo. Há uma força que carrega a matéria para cima, criando algo diferente dela própria, rearranjando suas formas, reconduzindo suas partes. E, do outro lado, uma gravidade que nos arrasta para o inerte, tropeços que mostram a dificuldade de nos diferenciarmos da matéria.

Uma realidade que se faz através daquela que se desfaz”

– Bergson, A Evolução Criadora, p. 175

Há aqui a continuidade de um processo que se prolonga por 3,5 bilhões de anos, passo após passo, sem saber onde vai chegar, dividindo-se, multiplicando-se. O Elã Vital é a capacidade de acumular energia e memória. Acúmulo de energia retirada de outras fontes como outros animais e plantas e o próprio sol. Acúmulo de memória que é a própria duração, passado imanente, informação reunida pela experiência (genes, experiência, cultura).

Se a matéria se coloca como um problema, a vida responde afirmativamente e encontra múltiplas maneiras de responder a este problema. Um pequeno desvio, um Clinâmen, um desequilíbrio que rasga a realidade! Queremos manter este desequilíbrio. Podemos definir o Elã Vital como um grão de loucura em meio à racionalidade material. Somente assim seremos capaz de fabricar novos modos de vida.

– Fabian Ofner

Mas notem como há uma consistência aqui, e esta palavra é muito importante. O Elã Vital é uma duração que resiste, insiste, mantém-se. Ela se manifesta com toda a sua força nos seres humanos, mas aparece como que apagada pela fica camada de hábito que se depositou em nossas vidas, que endureceu e agora impede o movimento.

Essa consciência, que é uma exigência de criação, só se manifesta a si mesma ali onde a criação é possível. Adormece quando a vida é condenada ao automatismo; desperta assim que renasce a possibilidade de um escolha”

– Bergson, A Evolução Criadora, p. 184

Nos tornamos autômatos, máquinas de responder a estímulos, peças comportadas de um aparelho de moer existências. Parece improvável, mas preferimos a obediência, o estável, a adaptação! Nos tornamos tão bons em seguir ordens e nos submeter que imaginamos a evolução das espécies apenas como uma mera adaptação ao meio, uma submissão à natureza.

Que a condição necessária da evolução seja a adaptação ao meio, não o contestaremos de modo algum. É por demais evidente que uma espécie desaparece quando não se curva às condições de existência que lhe são impostas. Mas uma coisa é reconhecer que as circunstâncias exteriores são forças que a evolução deve levar em conta, outra é sustentar que são causas diretrizes da evolução. Essa última tese é a do mecanicismo. Este último exclui absolutamente a hipótese de um elã original, quer dizer, de um ímpeto interior que levaria a vida, através de formas cada vez mais complexas, a destinos cada vez mais altos”

– Bergson, Evolução Criadora, p. 79

Falamos da adaptação como algo passivo, uma vida que não vibra mais, que simplesmente se conforma com a matéria. A adaptação nos parece pouco, ela é um nivelamento para baixo, domínio de forças reativas. Ela é quase que um terreno perdido para o inimigo, cedemos. Qual a diferença entre esta adaptação e a morte? Neste sentido, a melhor adaptação seria confundir-se totalmente com a matéria, perder-se dentro dela. Afinal, a morte é um tipo de “adaptação” ao meio, entropia pura, onde a luta nem mais acontece.

A evolução adaptativa coloca o acaso como vindo de fora e selecionando as mudanças. Nós colocamos a evolução como um ímpeto de criação interna que luta contra a natureza! A vida quer mais que adaptar-se, ela é uma própria capacidade de variação e crescimento. O Elã Vital força a matéria, a atravessa e lhe dá forma. Não queremos apenas nos adaptar, queremos continuar durando, e duração é condição para a diferença. Manter as condições de criação. A vida é mais que adaptação, poderíamos até dizer que é seu movimento contrário. A água se adapta ao leito do rio, a vida é a subida que o peixe realiza rio acima ano após ano.

O Elã Vital é um conceito positivo, ele age, cria, faz, transforma. As condições externas são elementos do problema, a questão é em que medida somos passivos em relação a isso. A vida opera na natureza, ela se esforça, sobe a ladeira que a matéria desce, faz o acaso pender para o seu lado, vira o jogo. Parece, no fim das contas, que a vida não é nada além de uma determinada maneira de se organizar e fluir pela matéria, mas ela é mais, ela é produção. Movimento que adiciona alguma coisa, coloca algo de diferente. O resultado da soma é maior que as partes. Surplus, significa que o efeito é a causa e algo mais, um excesso. O Elã Vital pega o movimento e o leva além, atira a flecha mais longe. A vida abre esta totalidade, dá mais um passo além levando a realidade para onde não sabemos.

Mesmo que aos trancos e barrancos… coitado… este movimento segue incansavelmente! Quantas vezes seu esforço não dá em nada, quantas vezes ele não se perde, encontra becos sem saída? Mas tudo bem, sem criação não há liberdade! A vida não aceitaria ser menos. Como uma grande explosão estelar, o Elã Vital se espalha para todos os lados, fertilizando o planeta, criando diferentes formas, disposições, comportamentos, possibilidades, vidas.

Texto da Série:

Elã Vital

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

Mais textos de Rafael Trindade
Subscribe
Notify of
guest
4 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
Cristhiane
Cristhiane
5 anos atrás

Além de esclarecedores, os textos do Razão Inadequada são sempre inspiradores. Gostaria de saber qual a relação do conceito de Élan Vital de Bergson e os conceitos de “Imanência”, de Deleuze, “Vontade de Potência”, de Nietzsche, e “Natureza” em Espinosa (ou “conatus”). Trata-se sempre da mesma ideia? Quais as diferenças. Obrigado.

Deivison Oliveira
Deivison Oliveira
Reply to  Cristhiane
3 anos atrás

Lendo sua pergunta, lembrei daquela ideia de que em uma boa pergunta já há a resposta. Abraço

Mayara Borgueti
Mayara Borgueti
4 anos atrás

Acho esse texto muito bonito, tirando por esse péssimo hábito de ofender outros assuntos com profundo potencial filosofico. Poderiam muito bem reformular esse paragrafo. “Antes de mais nada, não podemos confundir o Elã Vital com qualquer tipo de energia mística. Estamos longe de falar de forças ocultas ou mágicas. Nada de duendes ou influência dos signos. Não é nada disso. Bergson foi acusado inúmeras vezes de um vitalismo esotérico, mas o filósofo francês não cairia em explicações baratas e imprecisas e não podemos deixar que sua filosofia se torne algo obscuro e enigmático. Como um bom alfaiate, ele recorta conceitos… Ler mais >

Anna Saibel
Anna Saibel
3 anos atrás

Fantástico! Gratidão por todo o saber compartilhado!