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Ao longo do Tratado Teológico-Político, Espinosa fornece outra perspectiva para diversas alegorias bíblicas. Algumas delas sustentam grandes preconceitos passados adiante como hábitos impotentes. Vimos o caso dos Eleitos e dos Mandamentos que, apoiados na ideia de um Deus transcendente e legislador, promoviam apenas ignorância. Um pequeno mito pode fazer de uma ideia falsa algo muito poderoso.

Como sabemos, a proposta de Espinosa é fazer uma leitura crítica dos Escritos Sagrados. Ele não cede às dificuldades, ao contrário, ele sempre tenta apresentar uma justificativa imanente para aquilo que foi lido como transcendente. Sempre sustentado pela ideia de Deus como Natureza, ele vai substituindo uma a uma as má interpretações, como que trocando as peças defeituosas de uma grande máquina.

Deus disse: ‘Não comam do fruto da árvore que está no meio do jardim, nem toquem nele; do contrário vocês morrerão’.”

–  Gênesis 3,3

O Pecado Original ou Mito da Perfeição é uma grande pedra no caminho, cuja interpretação é extremamente danosa. Ele é usado basicamente para justificar todo o mal, toda a dor, toda a decadência do homem e, o que é pior, coloca culpa a mulher.

Como costuma-se entender o Mito? Como um espelho que se quebrou para sempre, a perfeição da vida no paraíso foi perdida na primeira dentada da maçã. Como um erro irreparável, a criação desobedeceu seu criador e por isso amarga uma vida decadente.

Enxergar a vida por essa lente torta, nos faz perder a confiança nela. Essa estória milenar embaça nossa visão e atrapalha o caminhar. Diz-se que Espinosa era um pequeno comerciante, que passava os dias a polir lentes e as tardes à filosofia. Neste caso, podemos pensar que uma coisa não se distingue tanto da outra. Polir essa má interpretação, limpar a vista dessas sombras anciãs e a mente dessas turvas ideias.

Rembrandt

Está escrito que Deus disse a Adão que este não deveria comer o fruto da árvore do conhecimento, pois aquilo o podia matar. Primeira questão: por que interpretamos essa revelação como um mandamento? Por que continuamos pensando Deus como um juiz? 

Vimos que não há sentido falar em leis divinas. Deus nada proíbe, pois aquilo que não pode ser feito, simplesmente não pode ser feito. Deus é infinita potência, tudo o que se efetua é expressão de suas capacidades. Dito de outra maneira, nada que possa ser feito contradiz Deus ou a Natureza. Se Adão comeu do fruto é porque ele podia comê-lo, ou seja, isso não contradiz a Natureza.

Mais um passo na cautelosa subversão espinosana: Adão não desobedeceu Deus. Quem lê esse mito dessa maneira, está equivocado. Tudo o que se faz, tudo o que se efetua, tudo o que acontece é desdobramento da potência de Deus em atributos e modos. Deus não coloca leis proibitivas, ao contrário, a Natureza expressa-se sempre como potência.

Isso nos leva a uma segunda questão: se não uma proibição, o que Deus revelou a Adão? Espinosa não debocha das Escrituras, ao contrário, ele pensa como podemos entendê-la de um jeito mais interessante. Ele percebeu que combater a ignorância com desprezo não mudaria muita coisa. Por isso, ele tenta compreender para quem sabe esclarecer aqueles que crêem nas Escrituras.

Deus revelou a Adão o mal que seria para ele a consequência necessária de comer o fruto, mas não a necessidade da consequência desse mal”

– Espinosa, Tratado Teológico-Político, IV, 9

Percebam a sutil inversão. Deus revelou a Adão que, para ele, Adão, a ingestão resultaria necessariamente em um mau encontro, nos termos de Deleuze. Como toda subversão espinosista, é bem simples, uma singela mudança que modifica totalmente o funcionamento da interpretação: bradar a consequência necessária é diferente de mostrar a necessidade da consequência. Para elucidar, vamos pensar um fruto venenoso, em vez de proibido. 

A Natureza tem diversas maneiras de mostrar a toxicidade: cores azuladas, bolinhas amarelas, espinhos e etc. Para bom entendedor, alguns desses sinais bastam para que ele perceba a indigestão como resultado necessário da ingestão de determinado fruto. A questão é que isso se apreende por um conhecimento racional, adquirido por as experiências passadas e capaz de relacionar conexões adequadas de causa e efeito entre as ideias e as coisas.

Embora o fruto venenoso seja diferente e isso esteja à vista para aquele que souber ver, ele não mostra nenhuma necessidade de consequência. Ele não é o mal em si, ele não é ‘venenoso’ a não ser na composição com outro corpo. A necessidade de uma composição intoxicante com o nosso corpo não nos impossibilita de comer o fruto venenoso.

O que Espinosa está dizendo é que Adão entendeu errado. Ele pensou que Deus lhe mostrou uma lei e simplesmente a infringiu. Até hoje os homens continuam lendo esse mito da mesma maneira que Adão. A partir do momento que entendemos que Deus não é um Monarca, precisamos lidar com o fato de que em vez de uma proibição, Ele mostrou a necessidade interna à relação.

Adão percebeu a revelação não como verdade eterna e necessária, mas como lei, quer dizer, como regra instituindo que um certo proveito ou dano será a consequência de uma certa ação, não por uma necessidade inerente à própria ação, mas em virtude do capricho e mandamento absoluto de um príncipe”

– Espinosa, Tratado Teológico-Político, IV, 9

‘Deus disse’ é o mesmo que ‘a Natureza mostrou’; e ‘Não comam do contrário vocês morrerão’ é o mesmo que ‘a consequência necessária dessa ação é ruim’. Em uma frase, Deus (ou a Natureza) mostrou que a consequência da ingestão do fruto seria ruim.  

Lendo dessa forma, o que significa esse mito? Substituída uma interpretação Moral por uma Ética, de que pode servir essa estória? Em que sentido podemos falar em pecado? 

“É preciso reconhecer que não estava ao alcance do poder do primeiro homem usar retamente a razão, mas que ele foi, como nós, submetido às paixões.”

–  Espinosa, Tratado Político, II, 6

Na filosofia de Espinosa, a Razão, assim como a Liberdade, é uma dura conquista. Ninguém nasce racional, basta olhar para a primeira infância. Percebemos uma disposição positiva em viver, um organismo disposto para existência. Somos Conatus desde o início, mas não racionais. Os homens nascem ignorantes. Eles não conhecem o mundo nem a si mesmos. A razão é, portanto, adquirida em um processo de experimentação e vivência.

Apenas para Adão e por seu conhecimento imperfeito, a revelação tornou-se uma lei e Deus se pôs como legislador e príncipe. […] todos esses atributos pertencem apenas à natureza humana e devem ser inteiramente afastados de Deus”

– Espinosa, Tratado Teológico-Político, IV, 9

Adão e Eva não são símbolo da perfeição perdida, do livre arbítrio escolhendo o mal. Eles representam a infância da humanidade. Por isso que Espinosa vai contra a leitura da tradição que coloca a perfeição como estado anterior ao pecado. O homem era perfeito antes de cair em pecado? Não! O filósofo reinterpreta o mito para mostrar que a perfeição está na Natureza mesmo quando ela nos envenena. Aqui, entendemos que o conceito de perfeição está naquilo que se perfaz, que acontece de maneira determinada e não no modelo da imutável transcendência das leis divinas.

Não há imperfeição no homem, ele erra simplesmente porque não conhece. Deleuze elucida bem a questão: “Não é o pecado que explica a fraqueza, é a nossa primeira fraqueza que explica o mito do pecado” (Espinosa e o Problema da Expressão, XVI). Ninguém sofre por causa de um longínquo erro na história do homem, mas por simples desconhecimento. Não há pecado original, há ignorância, desde sempre.

Desfeitos os mal entendidos, polidas as lentes, o mito do pecado volta a ser interessante. A inocência antecede o erro, o pecado – entendido como simples mau encontro – não é resultado de tendência ao mal, mas de ignorância. Não podemos inverter a ordem do conhecimento, a experiência vem sempre primeiro. A constituição de um tipo de conhecimento, dito racional, é que nos permite entrar em relações onde a necessidade se expressa e só nesse gênero de conhecimento é que podemos entender aquilo que Deus ou a Natureza revelam.

Texto da Série:

TeoPolítica

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Leonardo
Leonardo
5 anos atrás

Ótimo texto. Mais um entre muitos.

Gabriela
Gabriela
5 anos atrás

TEXTO EXEMPLAR…. enxergar Deus como uma potência , ameniza às vezes, que porventura, agiremos emocionalmente….

Francisco Tomaz Gonçalves
Francisco Tomaz Gonçalves
5 anos atrás

Espetacular! Sou adepto dos conceitos e da experiência revelados por Espinosa.

Francisco Tomaz Gonçalves
Francisco Tomaz Gonçalves
5 anos atrás

Espetacular! Sou adepto dos conceitos e da experiência de Espinosa.

ALANA
ALANA
4 anos atrás

muito bom!!!!!1

Luna
Luna
3 anos atrás

Que página maravilhosa!

Manoel Henrique
Manoel Henrique
3 anos atrás

Muito bom!

Dante Augusto Galeffi
Dante Augusto Galeffi
3 anos atrás

Parabéns Rafael pelos textos extraordinários e intensos! Uma saga filosófica própria e apropriada.

irineu
irineu
2 anos atrás

Deus não e proibição Deus e liberdade