Vós vos perguntastes muitas vezes: ‘Quem é Zaratustra para nós? Como devemos chamá-lo?. E, tal como eu mesmo, vos destes perguntas como respostas/ É ele um prometedor? Ou um cumpridor? Um conquistador? Ou um herdeiro? Um outono? Ou uma relha de arado? Um médico? Ou um convalescido?/ É ele um poeta? Ou um homem veraz? Um libertador? Ou um domado? Um bom? Ou um mau?'”
– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, Da redenção
Um livro para todos e para ninguém
“Assim falou Zaratustra” talvez seja o livro mais importante de Nietzsche, pelo menos ele assim o diz em “Ecce homo”. É também uma obra “para todos e para ninguém” porque ao mesmo tempo em que é escrito muito diferentemente dos livros convencionais de filosofia, é de uma profundidade absoluta, exigindo muito cuidado na interpretação. O livro trata de temas que estão presentes em toda a sua obra, mas estão aqui escritos de forma musical, poética quase mística, com parábolas, cantos e imagens rebuscadas. Ou seja, todos podem ler (e muitos leem) mas pouquíssimos podem entender.
Em sua época, o orientalismo estava muito presente na Europa (vide Schopenhauer) e Nietzsche teve contato com a lenda de Zoroastro, profeta persa, que viveu entre os séc. XII e VI a.C.. Na concepção da filosofia de Zoroastro, o bem e o mal são forças que lutam entre si, ou seja, ele foi um dos primeiros inventores da moral, e responsável por levá-la ao plano metafísico, universal. Sendo assim, Nietzsche o escolhe para redimir-se.
A primeira parte da obra nasceu em fevereiro de 1883 e foi escrita em apenas dez dias, em um momento de profundo sofrimento para Nietzsche; em julho, mais dez dias são necessários para nascer a segunda parte; assim também foi em janeiro de 1884 para a conclusão da terceira parte e finalmente, um ano depois, mais dez dias para a quarta parte que teve de ser custeada pelo próprio autor (o editor se recusava a imprimi-la, preferia folhetos anti-semitas e religiosos).
A Obra
Muitos autores definem esta obra como fruto de uma composição musical, uma sinfonia mais precisamente, composta em quatro partes: “talvez se possa ver o Zaratustra inteiro como música” (Nietzsche, Ecce homo). Mahler declarou que Zaratustra “nasceu completamente dentro do espírito da música”. Outros o declaram como um texto sagrado (Nietzsche o chamou de quinto evangélico), ou pelo menos uma paródia deles. Isso porque tal como Jesus e Buda, que deram seus ensinamentos através da fala, Zaratustra não deixa nada escrito para seus discípulos.
Contarei agora a história do Zaratustra. A concepção fundamental da obra, o pensamento do Eterno Retorno, a mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto alcançar”
– Nietzsche, ecce homo
Recusa dos Valores
Mas falemos então do livro, talvez uma das maiores criticas já feitas aos valores ocidentais. Ele pode ser compreendido como a mais profunda recusa dos valores e ideais do homem moderno. É necessários quebrar os valores morais, a hipocrisia de uma época, denunciar o niilismo que permeia nossas instituições: a educação, a política. Nietzsche salienta a destreza com que se deve manejar o martelo, é importantíssimo ter força para quebrar os ídolos, se tornar leão, mas apenas com o fim de criar novos valores.
Ali o homem é superado a cada momento, o conceito de ‘super-homem‘ fez-se ali realidade suprema – distância infinita, abaixo dele”
– Nietzsche, ecce homo
É neste livro que Nietzsche permite lançar-se o mais alto, o mais longe e com sua maior força. Sua flecha quer alcançar a outra margem, quer abrir caminho para o super-homem. Zaratustra é o “Não” sagrado do Leão, que é um “Não” ao niilismo, e a transmutação que destrói todos os valores que querem o nada. Através de Zaratustra, é possível redimir novamente a Terra, abrir espaço para que o espírito transforme-se em criança.
Ler Zaratustra
Ler Zaratustra exige tomar decisões, exige colocar-se a frente de problemas: como vencer o niilismo e quebrar com as velhas tábuas? Como afirmar o devir, o amor-fati? Como suportar o eterno retorno e abrir caminho para o super-homem? São várias perguntas que tentaremos responder mas muitas outras ficarão abertas.
Zaratustra não quer discípulo nem seguidores, quer aliados, por isso, chegado determinado momento será necessário seguir com as próprias pernas. A leitura de Zaratustra deve guiar para a liberdade, tornar-se senhor de si mesmo, os ensinamentos dele servem para apontar caminhos possíveis. E esperamos que esta série alcance os mesmos objetivos.
Segue abaixo a lista de textos, sendo cada um deles um capítulo do livro. A tradução usada para referência de citações e numerações das páginas é a de Paulo César de Souza, da editora Companhia das Letras. Cada texto desta série leva também a imagem de uma capa do livro em suas mais variadas edições pelo mundo.