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Se sofres por causa de alguma coisa exterior, não é ela que te incomoda, mas sim a apreciação que fazes dela. Bem, a eliminação imediata dessa apreciação cabe a ti. Se, porém, tu sofres em função de algo presente em tua disposição, qual obstáculo que te impede de corrigir a tua opinião?” – Marco Aurélio, Meditações cap. VIII, § 47

O exercício espiritual de definição física faz parte da disciplina do assentimento e tem como objetivo suspender o julgamento que colocamos nas coisas. Ou seja, a intenção aqui é descrever a coisa da forma o mais objetiva possível, sem adicionar nada de julgamentos internos, apenas o acontecimento puro.

Para isso, são feitas perguntas como: “O que constitui este acontecimento? Qual sua matéria, suas causas, seus efeitos? Como veio ao mundo? Por quanto tempo existirá?”

Produz para ti a definição ou a descrição daquilo cuja ideia se apresenta a ti com o objetivo de distinguir o que é do prisma de sua substância, em sua nudez, em sua plena inteireza: diz a ti o nome que lhe é próprio, bem como os nomes dos elementos de que aquilo que se apresentou a ti foi composta e nos quais será decomposta. Com efeito, nada produz tanta elevação de sentimentos da alma quanto ser capaz de distinguir com método e verdade cada objeto que se mostra na vida” – Marco Aurélio, cap. III, §11

Objetivo: Fazer para si mesmo uma representação tão exata, tão objetiva, tão precisa, que não deixe passar qualquer outro tipo de julgamento.

  • Uma reflexão cuidadosa: com completa ausência de precipitação
  • Uma avaliação imparcial: sem arbitrariedade
  • Uma afirmação irrefutável: pois se afasta do hipotético e do duvidoso

Como é importante representar para si mesmo, quando falamos de pratos chiques e outras comidas, coisas como: ‘este é o corpo morto de um peixe, este outro é o cadáver de uma ave ou de um porco’. Da mesma maneira podemos dizer: ‘este vinho é um monte de uvas amassadas’ e ‘esta vestimenta real é apenas lã de ovelha com sangue de mariscos’. Quando se fala da relação sexual, podemos dizer: ‘são apenas dois corpos se esfregando, acompanhado de um espasmo e a excreção de um líquido viscoso’. Essas representações são importantes porque atingem as coisas em si mesmas e vão ao fundo de seu ser, e assim as podemos ver como realmente são” – Marco Aurélio, cap. VI, §13

Por que é importante atingir as coisas em si mesmas? Ora, para não trocar o certo pelo duvidoso, não comprar gato por lebre. Dizer o que as coisas são é uma maneira de os estoicos habitarem o máximo possível o acontecimento presente e não ser levados por pensamentos perturbadores. 

Trata-se de ver as coisas em si mesmas, distingui-las do ponto de vista de sua matéria, de sua causa e de suas referências e finalidade” – Marco Aurélio, Meditações, cap. XII, §10

Atingir as coisas como elas são, ir ao fundo das coisas. O que é uma música? Um conjunto de notas. O que é o inverno? Uma estação do ano. O que é a morte? Desagregação das partes que nos constituem.

Sabemos que as coisas não são exatamente assim ou apenas isso. Mas esta é a ideia do exercício: abster-se de uma realidade que sempre chega em excessos e misturada ao nosso julgamento. Se fazemos uma tábula rasa do conhecimento, temos a chance de começar de novo e seguir novos caminhos.

Se o mundo é um caos de objetividades misturadas com subjetividades, se para todo fato e notícia temos mil opiniões, então os estoicos se preocupam com como estes fatos e opiniões podem levar nosso pensamento e nos tirar a capacidade de julgar por nós mesmos.

Vejo que meu filho está doente. Vejo. Mas eu não vejo que ele corre perigo. Desse modo, portanto, fixa-te sempre nas primeiras ideias, nada acrescentando a elas que proceda do teu interior, e assim nada acontecerá a ti. Ou, em lugar disso, faz o acréscimo como alguém que descobriu cada uma das circunstâncias presentes nos acontecimentos do mundo” – Marco Aurélio, cap. VIII, § 49

O objetivo é mostrar que existe um mundo e uma subjetividade. Olhando o mundo através de perspectivas novas somos capazes de pensar e de viver de maneiras diferentes.

Não se trata, então, de não ter ou de se afastar dos sentimentos. Todos os estoicos sabem que é impossível não ter sentimentos porque todo corpo afirma desejos e aversões. Trata-se muito mais de repensar e reconsiderar para tentar acessar outras coisas, outros caminhos.

Para a filosofia, o pensamento é lento, não pode ser afobado, precipitado. E o exercício de definição física nos mostra que temos controle sobre isso. Damos um passo para trás, ou melhor, para frente, saímos do turbilhão de nossos pensamentos e nos voltamos à coisa mesma. O que está acontecendo? Somos capazes de separar as coisas para analisá-la? Onde termina a coisa e começam nossos julgamentos? Onde acaba o acontecimento e começa nossa vontade exagerada de dar a nossa opinião? É quase impossível responder esta pergunta, mas o esforço nos leva a viver melhor.

A definição física nos ensina a reformular nossos juízos, não colocar demasiada confiança no que todos dizem das coisas e nem demasiada confiança no que nós mesmos dizemos das coisas. Este exercício ensina que as coisas são muito menores do que pensávamos e que nossas opiniões é que são grandes demais.

As Coisas e Nós – André Oviedo

dar às coisas
o tamanho das coisas
ou melhor
não dar nada a elas
nem tirar
aprender com as coisas
o seu próprio tamanho

Texto da série: Meditações – Marco Aurélio

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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2 Comentários
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Luiz Bucalon
Luiz Bucalon
3 anos atrás

Parabéns! Bravo!

Vitória Monalisa
Vitória Monalisa
3 anos atrás

Muito bom!