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Possuis a razão? ‘Possuo’. Então por que não a utilizas? Afinal, se ela cumpre sua função, o que mais queres?

- Marco Aurélio, Meditações

Das três disciplinas, a do Assentimento é aquela referente ao nosso próprio pensamento. O pensamento refletindo sobre si mesmo para encontrar o que faz sentido e o que não faz sentido. Por isso esta disciplina se refere à Lógica e fala dos Acontecimentos

Se pensar incorretamente, tomando o falso pelo verdadeiro, é o caminho mais curto para agir incorretamente, tomando o bom pelo ruim, então, talvez o melhor lugar para começar seja realmente a Disciplina do Assentimento. Afinal, nela compreenderemos onde estão nossos erros de julgamento e começaremos o caminho para viver melhor.

Estamos seguindo aqui nada mais do que a receita Socrática: “Examina a ti mesmo”. Porque todo o mal talvez comece exatamente por um mau julgamento. Nosso pensamento é pouco crítico, não procura estabelecer bases fortes e robustas. É um trabalho árduo, criticar a si mesmo, rever seus próprios pensamentos, mas necessário. Pensar melhor, para os estoicos, está diretamente relacionado com viver melhor.

Observa teu interior. A fonte do bem está em teu interior, fonte capaz de jorrar sempre desde que tu caves sempre” – Marco Aurélio, Meditações, cap. VII, § 59

A disciplina do Assentimento possui uma máxima de Epiteto: “Não são as coisas que perturbam o homem, mas seu juízo acerca das coisas”. O que isso quer dizer? Simples, mais do que falar das coisas, nós muitas vezes falamos do que pensamos das coisas, colocamos nossos preconceitos nelas, projetamos algo de nós. O que ensina então a Disciplina do Assentimento? A diferenciar o pensamento das coisas mesmas. Disciplinar o pensamento para o Sim e o Não é disciplinar-se para diferenciar o que é o objeto em si e o que nós projetamos sobre ele.

Vemos como a Disciplina do Assentimento está preocupada com a nossa maneira de pensar e de como podemos mudar o caminho que os pensamentos percorrem dentro de nossa cabeça. Através da reflexão crítica, podemos reavaliar nossos pensamentos (aliás, a origem da Terapia Cognitiva, da Programação Neurolinguística está aí). Onde os estoicos querem chegar com isso? Eles querem tornar nosso pensamento mais resistente, mais bem fundamentado, impedindo que sejamos levados facilmente de um lado para o outro. Sabemos bem como é fácil manipular o pensamento dos outros, deste modo, somos todos arrastados por forças externas a pensar de um jeito que nos prejudica. Não queremos isso, não queremos ser facilmente influenciados pelos discursos alheios, manipulados como massa de manobra. Ou seja, o objetivo dos estoicos é criar uma barreira, um obstáculo, um ponto de parada.

Por exemplo, o que é a morte? Disse Epiteto: “A morte não é terrível, senão teria parecido assim a Sócrates, mas o nosso pensamento sobre a morte a torna terrível”. Ora, a morte é apenas um acontecimento! O que nós pensamos e projetamos sobre a morte diz mais de nós do que do acontecimento. Ou seja, os estoicos querem criar essa diferenciação, uma coisa são os acontecimentos, que necessariamente se impõem, outra coisa são as representações e o valor que damos a cada uma delas, e isso pode mudar dependendo de nossa avaliação.

Exemplo:

  • “Meu cachorro morreu, e isso é horrível” ou “Não consegui aquele emprego, sou um fracasso”
  • O que é isso? São eventos exteriores, acontecendo no mundo:
    1. “Meu cachorro morreu”,
    2. “Não passei na entrevista de emprego”
  • Isso chega até nós, ou seja, nós temos representações do evento:
    1. Exprimimos para nós mesmos: “meu cachorro morreu…”
    2. A telefonista diz: “você não passou na entrevista”
  • A partir do acontecimento nós damos um valor para o evento:
    1. “Isso é horrível, estou muito triste”
    2. “Nossa, que pena, queria muito este emprego”
  • Reagimos aos assentimentos e aos desejos:
    1. “Nunca mais serei feliz, eu não mereço ser feliz”
    2. “Nunca vou conseguir um emprego, sou um inútil”

Não estamos falando aqui de não ter sentimentos, de suprimir emoções, mas sim de ter os sentimentos corretos para cada acontecimento. É normal ficar triste pela morte um ente querido, claro, mas falsos julgamentos geram falsos sentimentos, acarretando uma dor talvez muito maior que o natural. O perigo é o erro de julgamento que gera mais dor que o necessário.

Essa é a diferenciação para os estoicos, uma coisa é um fato físico, que não está em nosso poder, e outra coisa é um julgamento excedente que fazemos do que nos aconteceu. Este segundo momento é importante, pois pode estar errado, incoerente ou simplesmente ser pouco útil para nossa vida.

Tem em mente que tudo é apenas opinião e que esta depende de ti. Assim, se o quiseres, suprime tua opinião e, tal qual uma embarcação que contornou um promontório, terás diante de ti um mar calmo, totalmente estável, e um golfo no qual as ondas estarão ausentes” – Marco Aurélio, Meditações, cap. XII, §22

A maneira como julgamos as coisas é muito importante! E o que ensina a Disciplina do Assentimento? Que isso pode mudar! Podemos ligar nossos pensamentos de uma maneira diferente, relacioná-los de outra forma. Ou podemos simplesmente não nos apressar para conclusões precipitadas. Grande parte de nossos problemas são estas ligações e precipitações, com o erro em mãos, nos dirigimos por caminhos tortuosos e pouco interessantes para nós.

Marco Aurélio aqui fala muitas vezes de criarmos uma espécie de Cidadela Interna: ou seja, uma espécie de distância cognitiva entre nós e o mundo, não nos misturar tão facilmente aos julgamentos que temos das coisas, porque elas são simplesmente isso, julgamentos, podem estar certos ou errados, serem precisos ou imprecisos. Não devemos afirmar até ter certeza, não devemos afirmar só porque desejamos que seja assim.

É comum vermos nas meditações frases como: “Isto não pode tocar a alma”, “Isso não tem acesso à minha alma”, “Isso está lá fora”. O que isso quer dizer? Significa que esta distância nos permite não ser carregado pelas primeiras impressões do acontecimento, dar tempo a si mesmo para julgar com calma os pensamentos que se tem de cada acontecimento. Isso é essencial para nossos tempos! Quantas vezes não nos pedem uma opinião que simplesmente não temos a capacidade de dar? Quantas vezes não nos entregam o acontecimento e junto com ele o julgamento dele. Calma… diriam os estoicos, uma coisa é o fato, outra é o julgamento que fazemos dele.

Sendo assim, podemos dizer: a disciplina do assentimento procura não adicionar nada que não seja necessário às impressões, retirar aquilo que colocamos indevidamente nelas, examinarmos criticamente nossos pensamentos e assim a nós mesmos.

E, de certa maneira, não é este o objetivo de toda a filosofia? Aprender a pensar, aprender a avaliar se aquilo que pensamos é útil ou não, prejudicial ou não. Bergson também falava disso quando dizia da nossa capacidade de hesitar, não reagir tão rapidamente aos estímulos. Nietzsche dizia isso quando falava que a boa educação consistia em  “Não reagir de imediato a um estímulo”. 

Pois bem, os estoicos dizem exatamente a mesma coisa: não seja carregado pelas paixões, reflita sobre aquilo que você pensa e sente. Conheça a ti mesmo, conheça os julgamentos que você faz, conheça os lugares aonde seu pensamento vai, discipline-se na arte de pensar, para não ser enganado pela vida e principalmente pelos outros.

Textos da Série – Meditações de Marco Aurélio

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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2 Comentários
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Vanessa
Vanessa
3 anos atrás

O texto refresca o aprendizado do curso. Muito bom e inspirador.
O exercício é (ou parece) simples, mas é muito difícil avançar sem realmente separar um tempo para meditar sobre nossos atos e pensamentos.

juaocoltro
juaocoltro
3 anos atrás

De fato!
Essas atitudes mentais são essenciais!
Sensacional!