Skip to main content
CarrinhoClose Cart

A vida de Espinosa não foi muito fácil. Sua família era judia e fugiu de Portugal para escapar da inquisição. Chegando na Holanda, ele cresceu dentro da comunidade judaica; era muito inteligente, mas não pode continuar seus estudos devido à morte de seu irmão mais velho. Foi então forçado a ajudar seu pai nos negócios da família. Sua inteligência e ousadia lhe deram um amargo caminho: foi excomungado aos 24 anos, sendo completamente isolado da comunidade judaica. Tal acontecimento, apesar de traumatizante, permitiu a Espinosa concentrar-se nos estudos de filosofia e latim, suas verdadeiras paixões, mas sem nunca subestimar novamente a arrogância e o poder do pensamento religioso.

Em todos os momentos, até o resto da vida, Espinosa esforçou-se para livrar a si e aos outros da superstição religiosa, dos medos irracionais que brotam das inseguranças do homem e da ignorância que os mantêm escravos. Por não conhecerem como o mundo funciona, por não entenderem, os homens caem vítimas das explicações sagradas onde Deus tem todas as respostas e devemos apenas aceitar e obedecer o que os profetas nos dizem.

Nesta busca para livrar a si e aos homens de sua própria servidão, Espinosa trilhou o único caminho seguro que conhecia: a filosofia. Em seu mais importante livro, Ética, publicado depois de morto, o filósofo traça uma linha reta através de axiomas e proposições que levam do conhecimento à liberdade. Começando por Deus, passando pelos afetos, Espinosa ensina como transformar a servidão em liberdade. Para ele, a filosofia e o conhecimento têm essa capacidade, retirar as algemas que prendem o ser humano em medos irracionais e opressões políticas e religiosas.

Abrindo o livro, Espinosa explica que Deus não é um legislador, nem um ditador e muito menos um soberano sentado em um trono mandando e desmandando, escolhendo quem vai para o céu e quem é condenado ao inferno. Não, para Espinosa, Deus é a própria natureza, nem mais nem menos. Deus é todas as coisas e não há nada fora dele. Então, ele não está separado de sua criação, ele próprio é a sua criação e todas as coisas estão nele, nós também.

Já em seu Tratado Teológico Político, anterior à Ética, Espinosa alertara para os perigos da religião que começa oferecendo explicações do mundo mas termina impondo sua fé e forçando os outros a obedecerem o que suas crenças mandam. Não, Deus não quer obediência simplesmente porque é impossível desobedecê-lo, Ele é a natureza e suas leis naturais seguem de sua própria essência. Ele causou tudo, inclusive a si mesmo; divina é a substância infinita, ela é pura necessidade, essência e potência de criação. Deus é o criador eterno, pois nada está para além dele, nem pode destruí-lo.

Dentre os atributos de Deus, diz Espinosa, está a matéria e o pensamento. Nós, seres humanos, somos parte destes dois atributos. Nosso corpo é feito de várias partes, cada vez menores, que se movimentam ora mais rápida e ora mais lentamente. E nossa mente é composta de ideias. Temos a capacidade de nos mover e de pensar. Somos apenas uma pequena amostra desta potência infinita, que Espinosa chama de modo, sendo assim, estamos incluídos na cadeia de causa e efeitos tanto dos corpos quanto das ideias. Mas, mesmo que pequena, somos uma parte desta potência do ser que gerou todas as coisas e permanece imanente à sua criação; ou seja, somos capazes de, nas condições certas, criar e pensar corretamente.

As ações do corpo são diretamente sentidas pela mente, ou alma. Não há uma relação de hierarquia, os dois são a mesma coisa, dois lados de uma moeda (veja aqui). Tudo que fazemos se reflete em nossos pensamentos e tudo que pensamos se reflete em nosso corpo. Para pensar corretamente é preciso viver corretamente e o contrário também é verdade: para viver corretamente é preciso pensar corretamente. A alma é a ideia do corpo, um corpo que sofre diariamente, que sente dores, que sente-se oprimido, terminará por ter ideias horríveis da vida, do mundo e de si mesmo. Mas um corpo levado a viver cada vez mais segundo sua natureza, aumenta o número de ideias corretas de si e do mundo. Pensar é a maior virtude para Espinosa, é o caminho mais rápido para quebrar o peso dos idealismos e romper com as fáceis explicações supersticiosas.

Mas como pensar melhor e viver melhor? Nas relações, é claro (veja aqui). Nossos corpos são pequenas partes de matéria e pensamento que entram em relação com o resto do mundo. Viver é a arte dos encontros, viver bem é aprender a escolher estes encontros. Quando ocorre um bom encontro, minha potência aumenta, e eu me torno mais feliz. Contudo, quando ocorre um mau encontro eu me torno mais triste, e minha potência diminui. Nosso corpo e mente procuram sempre efetuar bons encontros para aumentar a potência de existir, Espinosa chama isso de conatus. Não queremos apenas existir, isso é muito pouco, queremos nos aproximar de Deus; ele tem a potência infinita de agir e de ser afetado pelas coisas, quando mais aumentamos esta capacidade, mais tomamos parte ativa da criação.

Espinosa quer libertar os homens do peso dos Ídolos, dos moralismos e torná-los verdadeiramente livres; para isso ele usa da principal ferramenta do ser humano: a razão. Mas o mundo é tão vasto, suas forças são tão grandes e opressoras, como é possível ser verdadeiramente livre? Somos levados de um lado a outro como folhas ao vento: temos medo, frio, fome, dor, é possível realmente ser livre? A servidão humana é a fraqueza do conatus, a impotência para regular nossos afetos internos e de resistir às afecções do mundo à nossa volta. Somos colonizados pelo mundo exterior. Desta forma, não só apenas nos deixamos dominar como passamos a desejar o que nos impõe. Mas o conatus quer não apenas existir, quer resistir e expandir-se. Com a razão somos capazes de escolher nossos encontros, a virtude do pensamento nos mostra a melhor maneira de ser afetado para aumentar nossa potência de agir.

A virtude é a força para agir segundo nossa própria natureza. Liberdade, para Espinosa, não é agir segundo possibilidades, é agir segundo nossa natureza. Somos uma parte da potência infinita de Deus, lembram-se? Não estamos fora do mundo, mas somos uma parte ativa dele. Sendo assim, basta uma pequena felicidade e nos tornamos mais parecidos com Deus (que é totalmente livre). Quanto mais somos felizes, melhor conseguimos pensar. Ninguém pensa bem quando está triste, somente a felicidade é capaz de nos levar cada vez mais longe.

A Ética de Espinosa é o caminho de reflexão no qual aprendemos a analisar nossos afetos e agir de modo a sempre nos contentar com nossos atos. O desejo de alegria do conatus é a força que nos impulsiona rumo à liberdade. Juntos, razão e emoção são capazes de fortalecerem-se e tornarem-se mais capazes de agir. É preciso que o pensamento se torne uma emoção tão forte quanto o medo que nos colocam.

Filosofar é questionar-se constantemente: é este o melhor caminho para a felicidade? O que estou sentindo? Sou realmente a causa de mim mesmo? Estou agindo segundo minha natureza ou só obedecendo ordens externas? O filósofo utiliza-se da razão para tornar-se virtuoso e feliz. Não porque haja uma recompensa após a vida para isso, mas sim porque a própria felicidade de filosofar já é uma recompensa. Espinosa foi o grande discípulo de sua própria filosofia. Vivendo feliz, trocando cartas com seus amigos, recebendo outros em sua casa para conversar. O filósofo sempre escolheu os melhores lugares para ter uma vida boa, simples em posses mas rica em pensamento e bons momentos. Soube muito bem evitar problemas com os intolerantes religiosos de seu tempo e os ignorantes que não entendiam sua filosofia e o chamava de ateu, materialista e imoralista (veja aqui).

Para que serve a filosofia? Ora, responderia Espinosa, para tornar-se livre, virtuoso, feliz, potente, autor de sua própria história, senhor de si mesmo. Tudo isso, para Espinosa, é a mesma coisa, são sinônimos. Quanto mais filosofamos, mais nos afastamos das tristezas e inseguranças da vida. Filosofar é deixar o medo e a esperança de lado para confiar na razão e em si mesmo. Claro que é difícil, mas através da Ética, podemos dar os primeiros passos para mais do que pensar filosoficamente, viver filosoficamente. Que caminho belo, quanto mais contentes, melhor agimos e mais próximos ficamos de Deus. Quanto mais filosofamos, mais queremos filosofar.

Na Ética, razão e emoção se unem para libertar o homem de todas as superstições e fazê-lo ser o mais livre que pode. O homem deixa de se submeter a qualquer poder moral e religioso, supersticioso ou autoritário, sua lógica agora é a da potência dos encontros. Tudo que causa tristeza é afastado, o filósofo não é mais alguém sisudo e taciturno, ele é aquele que age em vista de sua felicidade e dos outros, de acordo com a razão. Talvez por isso Espinosa tenha sido tão odiado, ele apostava na felicidade, na alegria, na satisfação, no prazer, no bom humor, no contentamento, na beatitude. Em um mundo tão covarde e triste, poucos ousaram filosofar como Espinosa.

 

Texto da Série:

O que é Filosofia?

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

Mais textos de Rafael Trindade
Subscribe
Notify of
guest
13 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
Karla
Karla
10 anos atrás

Ótimo post! Grande Espinosa!

LUIZ
LUIZ
10 anos atrás

Sou leitor recente de seus artigos e reconheço suas qualidades. Sugiro, portanto, que façam uma revisão ortográfica um pouco mais rigorosa para evitar erros que podem dar uma má impressão. abraços,

Marco Ribeiro
Marco Ribeiro
9 anos atrás

Muito bom o texto. Vivo o espinosismo e sempre adoro ler coisas sobre. Vejo que existem pessoas que compartilham do meu pensamento, isso me conforta 🙂

Judáh
Judáh
8 anos atrás

Eu sou leigo quanto à filosofia de Espinosa, mas lendo seu artigo encontrei algumas coisas que se encaixam no existencialismo Sartreano.
Espinosa de alguma forma influenciou na escrita e no pensamento de Sartre? E parabéns pelo ótimo texto!

Renato Pinto de Almeida
Renato Pinto de Almeida
8 anos atrás

Parabéns pela página! Sou um novato na filosofia de Espinosa e peço-vos elucidação quanto a minha leitura que gerou uma dúvida em relação ao seguinte trecho: “Não, Deus não quer obediência simplesmente porque é impossível desobedecê-lo, Ele é a natureza e suas leis naturais seguem de sua própria essência. Ele causou tudo, inclusive a si mesmo; divina é a substância infinita, ela é pura necessidade, essência e potência de criação. Deus é o criador eterno, pois nada está para além dele, nem pode destruí-lo”. Há aqui um antropomorfismo transcendental ou não, sobretudo nesta linha “Não, Deus não quer obediência simplesmente… Ler mais >

José Carlos
José Carlos
7 anos atrás

Parabéns pelo texto.

Brendda
Brendda
5 anos atrás

Esse texto mudou meu dia, nunca li algo tão lindo e libertador.

João Evangelista Filho
João Evangelista Filho
5 anos atrás

Muito bom, refleti bastante.

Javier Alcaire
Javier Alcaire
1 ano atrás

Parabéns pela bela compreensão e interpretação. Muito obrigado.

Carolina Rosa
Carolina Rosa
1 ano atrás

De quem é a imagem do começo? Com o desenho do rosto de Espinosa em meio às plantas?
Muito obrigada.