Que em meus escritos fala um psicólogo sem igual é talvez a primeira constatação a que chega um bom leitor”
– Nietzsche, Ecce Homo, Por que escrevo livros tão bons, §5
Como Nietzsche pôde ter a ousadia de se autodeclarar o maior psicólogo que a Europa já conheceu? Não seria mais uma prova da loucura aproximando-se do filósofo alemão? Não, não… muito pelo contrário, a lucidez de Nietzsche surpreende! Qual outro pensador mergulhou tão fundo na alma de seu tempo? Junte-se a isso o mérito de não ser engolido pelo ressentimento, não sucumbir à má-consciência, não ser seduzido pelos ideais ascéticos.
O objetivo de Nietzsche como psicólogo é um só: explicar a doença do homem, explicar o por quê do homem tornar-se este animal amansado, que se machuca batendo nas grades em que está preso. A psicologia, para Nietzsche, é o estudo deste ser que está cansado de si mesmo, que procura desesperadamente livrar-se da falta de sentido, mas que ao mesmo tempo, e por isso mesmo, tornou-se tão interessante no processo. Um mundo no qual todos os ideais estão gastos, um mundo no qual todas as questões psicológicas foram moralizadas, embebidas de cristianismo e senso comum.
Nós, europeus, achamo-nos em face de um imenso mundo de escombros, no qual algumas coisas ainda estão de pé, outras aparecem deterioradas e medonhas, e a maioria jaz no chão, tudo bastante pitoresco – onde já se viram ruínas mais belas? – e coberto de ervas daninhas”
– Nietzsche, Gaia Ciência, §358
O medo de Nietzsche, sua grande preocupação, é que uma filosofia nasceu, cresceu e gerou filhos na doença e no ressentimento. Ora, a tarefa do psicólogo é não permitir que isso aconteça! Seria uma grande desgraça para nós uma filosofia que tirasse conclusões de um corpo que não traz consigo vida, não carrega uma chama criadora em seus atos. Mas infelizmente, constata o filósofo alemão, esta é a condição do pensamento em quase todas as suas vertentes: a filosofia dos padres, a filosofia idealistas, os psicólogos ingleses expressam apenas um corpo cansado de si, que nega a terra, despreza o corpo, sucumbe à doença e por isso inverte valores. Uma filosofia impotente inventa mundos onde finalmente a paz será alcançada.
Este é o empreendimento da filosofia de Nietzsche: compreender a doença que abate a alma humana, entender a motivação oculta nas perguntas de todos os pensadores: suas crenças, seus ideais, sua inversão dos valores. Uma filosofia da suspeita, que realiza uma reflexão sobre o ser humano, demasiado humano, e permite encontrar o sentido oculto deste pensamento. O objetivo é evitar que a doença se espalhe. Ninguém havia perguntado antes de Nietzsche de onde provém os valores: quem quer isso? Eles nascem da doença ou da saúde? São uma necessidade de consolo ou de afirmação da potência?
Não pode ser poupada à humanidade a visão cruel da mesa de dissecação psicológica e de suas pinças e bisturis […] já se começa a ver que produtos da mais séria natureza crescem no solo da observação psicológica”
– Nietzsche, Humano Demasiado Humano, §37
Quem sentir um certo desconforto, não tem problema, deve mesmo sentir, afinal são perguntas nunca antes feitas por qualquer psicólogo anterior ao autor de Zaratustra. Aqui o ar é frio, rarefeito. Neste ambiente é preciso ter estômago forte. Talvez no fundo de todos os valores que hoje supomos como grandes conquistas da humanidade se esconda o que há de mais podre, fraco, triste, doente, vergonhoso. Talvez o que hoje nos orgulhamos não seja mais que o prêmio de consolação de uma vontade que declina, afunda no niilismo como apenas um reflexo tênue e lânguido de um homem afastado do que pode. Podemos seguir adiante? Temos coragem para tal?
Aqueles que seguem adiante sabem que o objetivo de Nietzsche é destruir as ilusões que os homens criaram de si mesmos! Não precisamos mais nos debruçar sobre a metafísica, ou sobre a teologia, Deus está morto! Isso significa que o mundo tornou-se novamente plural! Este é o esforço inicial de Nietzsche ao inaugurar uma psicologia e destruir aquilo que chamou de atomismo psíquico. A crença na unidade é mais uma ilusão que o homem criou para sentir-se seguro em meio aos ídolos de barro que rachavam. A metafísica não poupou esforços para preservar uma entidade suprassensível. Mas de agora em diante a alma será um jogo de forças, um mar de vontades. Temos a ilusão de sermos um corpo e uma alma, mas os dois são um rio no qual não podemos mergulhar duas vezes!
Para darmos os próximos passos precisamos estar vacinados contra o nojo e a compaixão! Quando os portões da psicologia nietzschiana se abrirem não poderemos voltar atrás. O filósofo do martelo escancara de tal modo a alma de seu tempo que corremos o risco de sentir nojo, afastar com uma mão enquanto cobrimos os olhos com a outra. O eremita, o celibatário, seguem este caminho: isolamento do mundo, ele é podre demais para nossas almas pura, miserável demais para sermos felizes. Já o padre, o sacerdote, o pastor, seguem o caminho oposto: deixai vir as ovelhinhas; eles sucumbem à compaixão dizendo: “pobrezinhos, não sabem o que fazem”.
Quanta verdade suporta, quanta verdade ousa um espírito? Cada vez mais tornou-se isto para mim a verdadeira medida de valor. Erro ( – a crença no ideal – ) não é cegueira, erro é covardia…”
– Nietzsche, Ecce Homo, Prólogo §3
Nem o nojo nem a compaixão, Nietzsche quer a verdade que se oponha à covardia. Claro que não se trata de uma questão de verdade última, não é a busca por uma grande descoberta, escondida nos recônditos da alma humana. Podemos dizer que é uma perspectiva, que tudo, sem exceção, emerge como perspectiva e criação, tanto na saúde quanto na doença. Onde está a gênese do valores? Quem quer o bem? O que quer aquele que diz “isso é bom”? Nietzsche denunciará que o valor dos valores precisa ser revisto, questionado. E para isso ele segue o único caminho possível, uma genealogia da moral.
Mas antes precisamos afirmar, juntamente com Nietzsche, que o mundo é Vontade de Potência e nada além disso! Uma sede de dominar e de crescer, uma vontade de multiplicidade, não de unidade, só então chegamos à conclusão que uma psicologia nietzschiana não poderia seguir os caminhos já trilhados, e, logo, precisa abrir novas veredas questionando os deuses e valores antigos. Nietzsche nos traz uma vontade que quer efetivar-se, uma vontade de “tornar-se o que se é”. Uma psicologia que aprende a dizer Sim, que aprende o que há de potente em toda afirmação incondicional da vida. Uma psicologia transbordante!
Uma psicologia que tomasse tal tarefa à sério ofereceria a condição de um novo valorar e, enfim, a possibilidade de se tornar um bom filósofo. Quais são as condições psicológicas necessárias para se filosofar com o martelo? Ser um imoralista, desfazer a inversão de valores perpetrada pelo cristianismo, platonismo e afins. Tudo, no fim das contas, se passa como uma relação de forças, há vontade de potência o bastante para tal empreitada? Até onde podemos ir? Na clínica precisamos estar cientes disso: até onde o paciente pode ir? Até onde ele quer ir? A verdade nem sempre liberta, pode também, às vezes, despedaçar.
Toda a psicologia, até o momento, tem estado presa a preconceitos e temores morais: não ousou descer às profundezas. Compreendê-la como morfologia e teoria da evolução da vontade de poder, tal como faço – isto é algo que ninguém tocou sequer em pensamento: na medida em que é permitido ver, no que foi até agora escrito, um sintoma do que foi até aqui silenciado […] jamais um mundo tão profundo de conhecimento se revelou para navegantes e aventureiros audazes”
– Nietzsche, Além do Bem e do Mal, §23
O barco da metafísica naufragou, sua âncora era pesada demais; de agora em diante, apenas os fortes conseguirão nadar no mar caótico aberto à nossa frente! A bússola que os antigos filósofos nos deram já não funcionam mais (Platão, Kant, Schopenhauer). Aqui vemos como o Eterno Retorno pode ser uma ferramenta psicológica, até mesmo clínica, porque eminentemente ética. A pergunta é simples: “Você viveria sua vida mais uma vez e outra, e assim eternamente?“. O eterno retorno é a inversão do niilismo contra ele mesmo, é a transformação em ativo o que antes era reativo. Ele dá o tom desta nova música que dançamos após matarmos Deus.
Onde estão os novos valores? Só saberemos se passarmos pela prova do Eterno Retorno! E para isso é indispensável fazer experimentos consigo mesmo! A vida quer encontrar seus limites. A psicologia se afirma com essa constatação da irrestrita necessidade de encontrar novos valores e a dar sentido por si mesmo: viver de tal forma que a repetição infinita seja uma bênção, não uma maldição. Uma psicologia que realize a hierarquização das forças, que avalie as forças ativas e reativas.
Que grande poder de transformação é capaz uma psicologia nietzschiana! Após abandonar os falsos problemas para concentrar-se nas questões fundamentais, o filósofo seguiu um caminho que poucos antes dele conseguiriam: amor-fati. Amor ao destino, amor ao que é, afirmação da existência em todas as suas dinâmicas e diferenças. Nietzsche não perde tempo fazendo o homem sentir-se culpado, a religião já faz, e muito bem, este trabalho. O filósofo está mais concentrado em entender: quando o homem passará a afirmar o que foi, e assim se tornará o que é? Amor-fati: afirmação da Vontade de Potência, em si mesmo, mas em tudo. Negar os negadores como ética maior, aprender que o mundo é sua casa! Uma ética que ensine ao homem a não mais ter nojo nem compaixão de seus contemporâneos.
A psicologia encontra a grande saúde! Bom uso do niilismo, bom uso da morte de Deus, bom uso da vida, bom uso da multiplicidade de forças. O além-do-homem é o além-do-ressentimento, além-da-má-consciência, além-dos-ideais-ascéticos! Este animal doente deve encontrar em si as forças para superar-se! Há, é claro, uma boa dose de crueldade neste processo: matar o que te mata, redimir o passado, dizer “assim eu quis“. Nietzsche ensina a tornar-se cada vez mais leve, dá o tom e ensina a dançar uma música que poucos podem ouvir!
Que a psicologia seja novamente reconhecida como rainha das ciências para cujo serviço e preparação existem as demais ciências. Pois a psicologia é, uma vez mais, o caminho para os problemas fundamentais”
– Nietzsche, Além do Bem e do Mal, §23
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bacan o texto parabens,bela visão sobre o autor citado
Bacana seu texto. Faço parte de um grupo de estudos que articula o pensamento do Nietzsche, Foucault e Deleuze também, com a proposição de uma clinica psi na atualidade. Vou postar seu texto no grupo.
abraço!
Olá Kleber! Fiquei bastante interessado por esse grupo de estudos. Estou trazendo Nietzsche para meu TCC.
Republicou isso em afalaire.
Sem falar que os textos de freud tiveram provavelmente inspiração em Nietzsche. Aproveitando, vou deixar meu blog, com reflexões sobre a vida humana, pra quem se interessar.
http://www.profundezahumana.com.br
legal, sergio, vou dar uma olhada lá!
Até onde sei a moral influenciadora de Freud foi a de Kant
Tenho interesse em iniciar a leitura em Nietzsche, qual seria a melhor sequência para entendê-lo? Muito obrigado desde já.
te sugiro começar pelo blog, temos bastante material. Fora isso, te indico a leitura do Giacoia, Scarlett Marton, e o Amauri Ferreira.
Se quiser começar pelo próprio Nietzsche, um dos melhores é o Crepúsculo dos Ídolos.
Boa leitura!
Muito obrigado!
Humano, demasiado humano é bem bom tb.
E o blog tá de parabéns!
Caro amigo, gostei do texto, mas aqui vai uma crítica, ou apenas uma observação de uma constatação que me ocorreu. Percebo que muitos leitores ao escreverem sobre Nietzsche acabam por serem repetitivos… O que quero dizer com isso é que vejo pura e simplesmente a repetição de chavões de sua filosofia, e que tais textos só vão até certo ponto sem avançar propriamente no mundo da lógica Nietzscheana; que vejo um verdadeiro romanticismo de uma filosofia que exige uma certa dureza lógica. Os textos adquirem uma esterilidade, e giram em círulos superficiais, como se os pensamentos percorressem um “esquema básico… Ler mais >
Excelente texto!! Me alegra saber que não estou “sozinho” nesta jornada… rsrsrs
Parabéns por uma juventude sedenta pelo Saber!
A sífilis teve a sua contribuição para os dislates de Nietzsche. Um “psicólogo” (segundo o próprio) que não ultrapassou o seu tempo, nem tão pouco as suas doenças psicológicas. Os textos são caóticos e repetitivos, as premissas carecem de fundamentação, a pseudo argumentação aposta nas eternas falácias ad hominem que deixa transparecer um espirito desequilibrado, frustrado e doente. Para contestar o racionalismo e o teísmo falta lhe capacidade argumentativa. Parece um puto contestatário a quem faltam “tomates”/cérebro. E já era fácil na sua época. Entretanto, muitos dos pobres alienados, trabalhavam no duro para o alimentar, coisa de que o grande… Ler mais >