Sobre a vida de Tales, pouco se sabe. Um feito notável – a previsão feita pelo filósofo de um eclipse total do Sol de 28 de maio de 585 a. C. – permitiu estabelecer, com datas prováveis, o ano de 624 a.C. para seu nascimento e 547 a.C. para a sua morte. Parece ter tido ascendência fenícia e, em data incerta, empreende uma viagem para o Egito. Participou ativamente da vida política e militar de sua cidade”
– Gerd Bornheim, Os filósofos pré-socráticos, p. 22
Houve um tempo em que a filosofia não era moral… Sim, houve um tempo em que se podia filosofar sem pedir permissão aos deuses, nem ao Estado, nem ao Poder. Quando Tales atingiu o ápice de sua vida, a cidade em que nasceu, Mileto, era então a mais importante da Jônia, região da ásia menor, conhecida por sua atividade comercial e de navegação.
Tales é considerado o primeiro filósofo, sim, exatamente, e isso não aconteceu por acaso. Sua filosofia se constituiu ao distanciar-se das explicações religiosas, míticas e alegóricas que os antigos gregos davam para explicar o mundo. A filosofia, neste sentido, é uma ruptura.
Tales foi um dos sete sábios da Grécia, cada um deles ficou conhecido por máximas cheias de sabedoria. A de Tales conhecemos bem: Tudo é feito de água. Mas por que deveríamos acreditar neste absurdo? Tales chega a estas conclusões observando o mundo à sua volta. Tudo está permeado de água, diz ele, a vida é molhada; a morte, seca. Todo alimento é cheio de suco, nas veias flui o sangue. Mas talvez este não seja o melhor argumento aos céticos. Se a máxima não parece científica, ao menos uma justificativa pode nos contentar: voltamos a acreditar na natureza, retornamos à imanência.
O mar é a religião da natureza”
– Fernando Pessoa
É disso que estamos falando… o cosmos é um só, ele é água em suas mais variadas maneiras de se manifestar. Tales dizia inclusive que toda a terra do mundo está flutuando sobre a água. O mundo seria como um grande barco, navegando pela existência. Tales abre a realidade para o desconhecido, tudo flutua, revolve, boia, estamos à deriva! Talvez isso desencoraje aqueles que estão começando a estudar filosofia, mas não é este o nosso objetivo. Queremos mostrar a potência deste pensamento frente a outros.
Tales traça um novo plano de imanência! A força desta proposição está em não se afastar da realidade, preservar a existência no ato de explicá-la. Não precisamos de nada além deste mundo para explicar o sentido de nossas vidas. O mar é nosso símbolo de força e transformação, é de onde podemos explicar todos os mistérios.
À beira-mar – Eu jamais construiria uma casa para mim (e é próprio da minha felicidade não possuir uma!). Se tivesse de fazê-lo, porém, eu a construiria, como certos romanos, bem junto ao mar e nele penetrando – eu bem gostaria de partilhar segredos com esse belo monstro”
– Nietzsche, Gaia Ciência, §240
Por isso tantos filósofos, pensadores e escritores precisam da metáfora do mar, da água, das ondas. Tales e a água, Nietzsche e o mar, Bergson e a natação, Deleuze e os surfistas! A água é a base de tudo, ela está em tudo, ela é o limite além do qual encontra-se o inefável. Água é vida, é transmutação; ela hidrata e afoga, rega e arrasta. Sem água, nada seríamos. Os habitantes do Nilo sabiam disso milhares de anos antes dos gregos e prestavam reverência ao rio. Tudo necessita de água, ela guarda os segredos mais profundos, portanto é a base de tudo.
Ao escolher um elemento, nós recortamos a realidade, a retiramos do caos dos acontecimentos e lhe damos uma direção, talvez até uma ordem. Mas estamos o tempo todo aqui, olhamos para nós mesmos e pensamos, “fazemos parte disso”. Há um grau de pertencimento ao mundo quando dizemos que ele é água. Este é o milagre da filosofia, seus conceitos criam um plano de imanência. Nos sentimos pequenos ao dizer isso, mas nem de longe avistamos a culpa ou o ressentimento. Este mundo mesmo é inocentado em seu vir a ser constante, seu fluir em direção ao mar.
Sendo assim, queremos nos tornar novamente navegadores! Este é o convite para a definição de Tales, eis sua compreensão última: tornemo-nos exploradores! Este é nosso objetivo ao estabelecer a água como a base de tudo! E assim também provavelmente quis o filósofo de Mileto, muitos anos antes de nós, que levantássemos as velas e zarpássemos! Que mal poderia haver em lançar-se ao mar que não fosse redimido pela angústia de permanecer em terra firme?
E para onde queremos ir, então? Queremos transpor o mar? Para onde nos arrasta essa poderosa avidez, que para nós vale mais que qualquer outro desejo?”
– Nietzsche, Aurora, §575
Não há mais terra firme! Aqui está a conclusão de Tales, mesmo em terra agora que tudo é água, nos encontramos em oceanos desconhecidos! Quando falamos do mar, falamos do excesso daquilo que existe, encontramos o que há de excessivo na existência. Um infinito desconhecido se abre a cada amanhecer, há uma beleza inaudita nesta concepção de mundo.
Não teria sido Tales de Mileto o primeiro a matar deus com sua ética líquida? Não teria sido ele o primeiro surfista do pensamento? Longe dos liquidificadores de plantão, embusteiros líquidos… não queremos sua ética canalizadora! Nós sabemos que a proposição de Tales foi o primeiro ataque contra Deus. O lento afogamento divino que só se concluiria com Nietzsche. Não seria a água o sangue de Deus? Dele faremos vinho e muitas outras coisas.
Enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto ‘mar aberto’”
– Nietzsche, Gaia Ciência, §343
Somos surfistas, somos oceanógrafos, somos Santa Marias, Niñas e Pintas procurando nossas Américas! Queremos apenas sentir o mar embaixo de nossos pés, lembrando-nos constantemente que toda superfície confunde-se com a profundidade. Eis a imanência! Eis nossos caminhos. Nossos corpos são pranchas de fibra de vidro, são lemes, mastros e velas. São até mesmo âncoras. Não conseguimos ficar parados… queremos partir para a imensidão abissal, queremos enfrentar os monstros que habitam suas profundezas! Queremos represar e escoar nas profundezas da imanência. Um só elemento, a bombordo e estibordo! E subindo no ponto mais alto da embarcação gritaremos:
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
– Fernando Pessoa
Haja mar pra gente atravessar! Grato pelo texto, rafael! abç
Bom texto. Provocante, calmo e agressivo…
Bom texto.
Quando eu era criança e não sabia falar muito bem, talvez até 4 anos e meio, eu só conseguia falar “ame” e não aguá. uhuahuahsuahsu
Eu gostei do texto. Um dia fiz um exercício de sensação de ser água, daí saiu este poema:
Nesta noite chovi.
Chovi tanto que entornei-me da vida
Para regiões cálidas
De águas líquidas e claras.
Fui deliciosamente
Derramada da fluidez
De meu pensamento.
Chovo em águas fartas
Despencadas do agueiro.
Derramo-me das alturas
Para escorrer nos mais baixos solos.
Chovo com a força
Dos trópicos que me robustece.
Sou água acumulada,
Represa que não se segura
Mais.
…………………………………………
Apaziguada, agora, chovo calma.
E caio sobre a terra,
Acalentando-a.
Fiquei estranhamente feliz com esse poema.
Inevitavelmente…
“E o Espírito de Deus pairava sobre as águas […]”
Uma breve lembrança do Gêneses… ^^
Tão distante é o caminho quanto profunda a reflexão.
Nossa relação (contato) com o líquido já está presente desde o início, na criação, no útero, talvez por isso, esse reconhecimento, essa interação.
Vivo a vagar no mar entre procelas em busca de um porto seguro.
Uau! Que alegria encontrar esse blog nessa manhã chuvosa na cidade de Lódz, Polônia. Grata por esse conteúdo incrível. Eu estava a navegar no Google em busca do conceito de imanência e não consegui parar de ler tudo isso.