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Zaratustra ensina a afirmar sob o signo do leão: o Não precede e sucede o Sim, regra fundamental da vontade forte. Se a sua intenção é ensinar a pura afirmação, o que ele de fato consegue é afastar a negação, resgatando as forças ativas do constrangimento reativo, virando o niilismo do avesso. Ele é o princípio condicionante, aquele que prepara o terreno para o grande acontecimento. Ele não é o Além-do-Homem, ele é seu anunciador tanto quanto é o profeta do Eterno Retorno.

Mesmo com as condições certas, ainda não alcançamos o ponto da pura afirmação. O último homem aprendeu a dizer Não com Zaratustra, mas ainda não conhece Dionísio, o princípio incondicionado da afirmação.

A todos os abismos levo a benção do meu Sim (Zaratustra) … Mas esta é a ideia de Dionísio mais uma vez”

– Nietzsche, Ecce Homo, “Assim Falou Zaratustra”, 6

Zaratustra pede por “algo mais alto do que toda a reconciliação – a afirmação” (Zaratustra, Da redenção) e ele encontra: Dionísio é condenado à morte por causa de sua vida afirmativa e exuberante, por sua bela irresponsabilidade, por sua divina embriaguez. Irreconciliado, ele morre queimado, crucificado, esquartejado em festas de sacrifício sem fim, mas retorna, renasce como estrela brilhante para mais uma vez dizer Sim!

Dionísio é o personagem trágico. Na juventude, no livro “O Nascimento da Tragédia”, Nietzsche o associava a Apolo, o deus prudente da forma e da beleza, para formar a noção de drama, tragédia com sentido estético elevado. Só mais tarde é que ele descobriu que Dionísio não precisa de Apolo para se afirmar. Ele diz Sim independentemente, pois está intimamente ligado ao fundo trágico da existência.

O que descobrimos nesse deus trágico é o Sim incondicionado. A forma estética que queremos verdadeiramente não é a do drama, mas a da alegria. Dionisio afirma-se sorridente por sob o caos, sem nele imputar a finalidade, mas dele arrancando o alegre.

Dionísio é apresentado com insistência como o deus afirmativo e afirmador. Ele não se contenta em ‘resolver’ a dor num prazer superior e suprapessoal; ele afirma a dor e faz dela o prazer de alguém. Mais do que se resolver no ser original ou reabsorver o múltiplo num fundo primitivo, Dionísio se metamorfoseia em múltiplas afirmações. Mais do que reproduzir os sofrimentos da individuação, ele afirma as dores do crescimento. É o deus que afirma a vida, para quem a vida tem que ser afirmada, mas não justificada, nem redimida.”

Deleuze, Nietzsche e a Filosofia

Quando ressuscita, Dionísio não faz como Cristo. Quando vive, Dionísio não faz como Sócrates. Ao tocar sua flauta, Dionísio não depende de Apolo. Em cada chance que tem, o que ele faz é afirmar de múltiplas maneiras, mesmo sabendo que a morte é seu destino recorrente. Esse deus que dança ensina que a negação está em segundo plano. A vontade de potência é afirmação. Se niilismo é o seu segundo nome, não é senão uma face obscura à qual só olhamos pelo tempo necessário.

É preciso ter asas quando se ama o abismo …”

– Nietzsche, Ditirambos de Dionísio

Não vamos esquecer, aprendemos a enfrentar a negação tornando-nos grandes niilistas. Descobrimos a equivocidade do absoluto, o fundo de nada, a ausência completa de sentido, a doença da vontade, tudo graças ao niilismo. Mas já olhamos por tempo demais para a negação e ela não é a única qualidade da vontade de potência.

Nicholas Roerich

Em seu materialismo dinâmico, a vontade de potência é a plena afirmação das forças. Esse é o plano do universo e da vida. O fato de que nos homens esse plano produziu um devir-reativo, não é mais do que um enorme azar, uma longa doença na espécie, pois, com Dionísio descobrimos, a afirmação é o princípio incondicionado da vontade de potência. Tudo se afirma, mesmo que no mínimo, mesmo que em seu limite péssimo. Se ao buscar a essência, encontramos o nada e nos desesperamos, isso diz de nossa incapacidade de afirmar, de dar conta do niilismo por ele mesmo.

Talvez por uma má leitura da preposição ‘de’ em vontade ‘de’ potência, tenhamos confundido por tempo demais a vontade como falta, carecendo de um objeto de representação. Achando que a vida é uma luta pela potência, pelo reconhecimento, pelo preenchimento, o que nos coloca todos contra todos. Precisamos urgentemente entender de outra maneira. Vontade de potência é um plano que dá potência. Ela é essencialmente doadora e criadora. Mesmo a vida fraca, é ainda vida. O vivo mesmo sem sentido, é ainda… vivo. O mundo não é verdadeiro, nem real, mas vivo!

É por isso que Nietzsche vê a arte como um modelo melhor para a vida do que a verdade. A verdade nos lança numa espiral paranóica de busca sem fim, enquanto a arte, entendida como interesse vital e potência do falso, coloca a criação em nossas mãos. A vontade de potência está do nosso lado: ela é o barro da cerâmica, ela é a tinta do quadro, ela é o som do acorde, ela é o gesto do ator, ela é a luz do filme. E, terminado o processo criativo, continua lá, em múltiplos sentidos.

Se a vida não nos excita, se somos acostumados a maldizê-la, não é a vontade de potência que fala em nós, Dionísio não tem nada a ver com isso; mas exatamente o contrário – são as impotências, as incapacidades, as impossibilidades. Enxergar o mundo como predação sem fim só diz o quanto se está doente. Mais valeria desistir de uma vida assim, mas nem para isso se tem potência.

Nicholas Roerich

Mas Deus não morreu? Por que falar em Dionísio? É simples: existe uma religião dos fortes, dos alegres, dos afirmadores. Deus está morto não é uma proposição especulativa, não é um conceito limitante. Ao contrário, é um princípio pluralista, é uma gênese diferencial. Queremos a possibilidade de inventar deuses e imaginar suas sagas; queremos colocar mitos afirmativos no lugar da obsessão unitária e unificada do deus entronado.

A religião pode ter uma afinidade com a negação, mas a ela não pertence. Todo pensamento transcendente, inventando um além-mundo para justificar este, usa a religião como arma de dispersão. Há de se descobrir a religião imanente: verdadeira benção do mundo. Da inconstância que permite a diferença ao hábito que fundamenta a repetição – queremos estar bem ligados, atados afirmativamente.

Em momentos de dor, de tristeza, precisamos lembrar de Dionísio. O trágico é a alegria do múltiplo e a consagração do diverso. Não estamos dizendo que seja fácil, sabemos disso, mas estamos lembrando que não é impossível. Nossa única chance é afirmar tudo ao mesmo tempo, eis o aspecto mais exigente da filosofia de Nietzsche.

Dionísio é nossa primeira afirmação. Dizem que a filosofia de Nietzsche não tem ontologia. Não poderíamos discordar mais. Em Nietzsche, o ser é a afirmação. A negação é apenas um de seus modos. A vontade de potência, mar de forças, campo do possível, além de bem e mal, coloca seu critério: afirmar ou naufragar.

Dia de minha vida!
O sol se põe.
A lisa maré
já está dourada.
O rochedo respira quente:
acaso a felicidade ao meio-dia
dormiu sobre ele a sua sesta? –
Em luzes verdes
o pardo abismo lança brincando felicidade para cima”

– Nietzsche, Ditirambos de Dionísio

Texto da Série:

4 formas de Niilismo

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Ibriela
Ibriela
2 anos atrás

Sim, sempre compreendi a vontade de potência, como uma vida de extrema soberania (outra ideia bem forte no Zaratustra, não é?), uma vida exuberante, um tanto distinta das ideias de Georges Battaile que vai buscar no erotismo uma potência de morte. Gosto de pensar nesses paralelo. Obrigada pelo texto.