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De tanto obedecer, adquirimos reflexos de submissão” – A Servidão Moderna

Poucas coisas fascinavam tanto Nietzsche, e ao mesmo tempo o enojavam tanto, quanto a fraqueza do homem moderno, sua completa submissão e falta de rebeldia. Sim, o ser humano se apequenou, se tornou frágil, tímido, infeliz. Uma de suas principais criações, a moral, nos dá prova disso.

A moralidade não é outra coisa (e, portanto, não mais!) do que obediência a costumes, não importa quais sejam; mas costumes são a maneira tradicional de agir e de avaliar. Em coisas nas quais nenhuma tradição manda não existe moralidade; e quanto menos a vida é determinada pela tradição, tanto menor é o círculo da moral”

– Nietzsche, Aurora, §9

Para adequar-se à sociedade, o ser humano, desde a mais tenra idade é inserido na moralidade dos costumes, dela emerge o homem soberano capaz de fazer promessas. Tudo começa assim: Nietzsche se pergunta na Genealogia da Moral, como foi possível criar um homem capaz de prometer, de se lembrar? Ora, muito simples, no espírito dele, algumas coisas devem se tornar fixas. Algumas coisas não deve ser jamais esquecidas, devem ser cravadas na memória, mesmo que à força e com grande crueldade: uma pequena coleção de sins e de nãos.

O que é a tradição? Uma autoridade superior, a que se obedece não porque ordena o que nos é útil, mas porque ordena. – O que distingue esse sentimento ante a tradição do sentimento do medo? Ele é o medo ante um intelecto superior que manda, ante um incompreensível poder indeterminado, ante algo mais do que pessoa – há superstição nesse medo”

– Nietzsche, Aurora, §9

O objetivo da sociedade sempre foi o de tornar o homem regular e calculável. O que se exige aqui é uma incondicionalidade da obediência. A Moralidade do Costume é o que impõe e obtém esta obediência. Impor um caminho, que deve ser seguido quase que inconscientemente, maquinalmente, sem possibilidade alguma de reflexão. O bem será o que nos disserem que é, o mal aquilo que apontarem como mal, não há espaço para exceções. Em última instância, a lei externa se sobrepõe aos valores internos, ao ponto de suprimi-los completamente.

Quem é o mais moral? Primeiro, aquele que observa mais frequentemente a lei”

– Nietzsche, Aurora, §9

No fim das contas, a prática de obediência torna-se um hábito! Obedecemos por reflexo! Existe vício melhor que este para o senhor que domina? Esta constância é plena e termina por cercear os afetos, restringi-los a apenas um ou dois. Nada sai do lugar, tudo torna-se previsível. Quando falamos de monopolítica, estamos nos referindo exatamente à prática de limitação dos afetos (bio)políticos possíveis em nosso cotidiano. Seleção de afetos: medo, tristeza, etc. Qualquer coisa que coiba, apare, vede. O ser humano se torna perigosamente previsível, nada de diferente pode ser esperado dele.

A moralidade dos costumes quer, de maneira simples e categórica:

  • inscrever o homem no social;
  • conter seus instintos;
  • cercear seus afetos.

Ah, quantas superstições não nascem do medo, já dizia Espinosa! Tudo em nome da constância universal! Manutenção do status quo, estabilidade perene. A origem da responsabilidade, onde o homem se torna capaz de fazer promessas, se dá com a Moralidade dos Costumes. Através de um coleção de sins e nãos que são seguidos à risca. A intenção destes mecanismos é criar um homem submisso, incapaz de quebrar suas promessas, segui-las como um cordeirinho. Mas veremos que não é necessariamente isso que acontece…

O homem livre é não moral, porque em tudo quer depender de si, não de uma tradição: em todos os estados originais da humanidade, ‘mau’ significa o mesmo que ‘individual’, ‘livre’, ‘previsível’, ‘arbitrário’, ‘inusitado’, ‘inaudito’, ‘imprevisível’”

– Nietzsche, Aurora, §9

Nesse sentido, mal significa autônomo, singular, independente. Se pontos são colocados a disposição de uma linha que os sobrepõem, qualquer mínimo desvio corre o risco de fazer o empreendimento todo fracassar. Tudo que foge à regra, tudo que quebra a regularidade à qual todos estão acostumado é perigoso e deve ser vigiado com cuidado ou controlado para que seus fluxos não fujam ao controle, não escape da aparente normalidade na qual vivemos.

Cada ação individual, cada modo de pensar individual provoca horror; é impossível calcular o que justamente os espíritos mais raros, mais seletos, mais originais da história devem ter sofrido pelo fato de serem percebidos como maus e perigosos, por perceberem a só próprios assim”

– Nietzsche, Aurora, §9

– Susano Correia – Homem Face a Face com o Abismo

O mal é o que flutua, multiplica-se, varia, em uma frase: a diferença é um perigo! Ou seja, existe uma dose delicada que transforma o remédio em veneno. A constância limita, mas é também aqui que nasce a responsabilidade que talha o homem livre. O moralidade do costume ensina a obedecer, mas não necessariamente o quê, e nesse ponto, uma linha de fuga pode ser traçada!

Há uma enorme distância entre o adestramento, obediência pura e irrefletida e, do outro lado, a possibilidade de crescimento através de uma vontade firme e inflexível. É aqui que Nietzsche está: as duas atitudes nascem da mesma capacidade de prometer. Por isso, segundo Nietzsche, a moralidade do costume é tão necessária. Apenas os fortes podem prometer, despertando temor, confiança, reverência e respeito, mas não é fácil criar no homem um memória e uma responsabilidade.

O indivíduo soberano assemelha-se apenas a ele mesmo. Ele é o fruto maduro que escapou na hora certa de um longo processo de maturação que sempre termina por apodrecer. Ele sim é um homem que pode prometer, mas sem tornar-se um prometedor de qualquer coisa! A moralidade do costume, adverte o filósofo alemão, apenas nos serve como meio, nunca como fim. Um homem que aprende a obedecer às leis nunca será capaz de obedecer às suas próprias leis! Sendo assim, o espírito livre não é moral, porque nunca buscará na moral externa seus valores.

O domínio de si reflete-se no domínio das circunstâncias, na força sobre o ambiente que o rodeia. O mesmo ambiente cultural pode criar um homem que obedece por obedecer cria também um homem capaz de desobedecer porque obedece apenas a si mesmo. Este homem será aquele que valora, que honra ou que despreza, que traz mais para perto de si ou que afasta.  

O indivíduo soberano não reconhece direitos, não há lei universal que garanta tudo a todos, não há dignidade humana. Ele não reconhece identidades, não há humanidade ou comunidade. Os indivíduos soberanos se reconhecem apenas na diferença, e articulam-se apenas no que lhes torna peculiares, naquilo que difere em intensidade. Há um serena vontade de distinção! Há igualdade apenas na força, mas o processo é de contínua diferenciação.

Nietzsche encontra neste personagem conceitual aquele que também é capaz de criar para si seus próprio valores, aquele que prescindiu da moral para levar sua vida um passo além, traçando uma linha em direção ao porvir. Pois bem, autônomo e moral se excluem! É impossível ser moral, submisso ao outro e ser autônomo ao mesmo tempo. Mas os dois nascem da mesma fornalha cultural. Irônico… Isso significa que o soberano legislador é nômade e anda pela tangente da coerção social e poder ordenador da lei.

Levando em conta que o organismo é uma estrutura hierárquica de muitas almas, então é necessário que o indivíduo aprenda a acioná-las, conduzi-las, reprimi-las se necessário. Por que não? O adestramento serve para que o homem aprenda a acionar suas forças reativas, colocá-las no lugar. Precisamos ensinar o homem a mandar e a obedecer a si mesmo! Isso pode dar certo e muito errado (a série de má consciência pretende dar conta deste processo).

É imprescindível que se aprenda a mandar e a obedecer, porque basicamente só aprendemos a seguir ordens sem questionar, irrefletidamente! No meio deste processo, queremos encontrar os poucos privilegiados que, em meio ao mar de forças, não tenham sido tolhidos, castrados no meio do processo. O resultado final é um indivíduo forte, capacitado para as mais difíceis situações, mas que ao mesmo tempo não é uma máquina de obediência.

Tornar-se duro, mas sem perder a capacidade de valorar por conta própria! Eis o objetivo de Nietzsche, eis o que a sociedade não consegue fazer. Como prestar maiores honras a Apolo? Medidas e proporções, mas é imprescindível haver um plus de força, porque muitos, através deste processo, tornaram-se escravos: corpos dóceis, em tudo frágeis, obedientes, incapazes, atrasados, alheios. Estes são os homens que falharam, diz Nietzsche, que não deram certo, que quebraram.

Sob o domínio da moralidade do costume, toda espécie de originalidade adquiriu má consciência; até o momento de hoje, o horizonte dos melhores tornou-se ainda mais sombrio do que deveria ser”

– Nietzsche, Aurora, §9

Texto da Série:

Genealogia da Moral

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Marcílio Lima
Marcílio Lima
4 anos atrás

Não há dúvidas de que Nietzshe, apesar de sua genialidade filosófica, não é exatamente um tipo de referência de bons custumes. Por isso mesmo, foi, durante muitos momentos em sua vida, um grande ídolo para parte significativa da juventude incauta de sua época.

Claudio Carvalho
Claudio Carvalho
4 anos atrás

Textos excelentes. Como professor de filosofia, vejo aqui uma fonte riquíssima de pesquisa e reflexão. Obrigado.

Denis Luiz de Lima
Denis Luiz de Lima
3 anos atrás

É muito triste sabermos que toda cultura ocidental foi invertida e pouquíssimos poderão chegar a desvencilhar desta armadilha da moral criada apenas para controle social.Que tempos os nossos!,Existe saída sim, mas enquanto se vender mais livros de Paulo coelho do que livros de Nietzsche estaremos muito longe da humanidade se recuperar.