O texto “Um só ou vários lobos” é a despedida de Deleuze e Guattari da psicanálise. A partir deste texto, o Mil Platôs deixa o campo do raciocínio psicanalítico e mergulha no campo da multiplicidade.
Este Platô se refere à “História de uma neurose infantil – O Homem dos Lobos”, de Freud, escrito em 1914 e publicado em 1918. O caso é o relato de um paciente sobre sua infância e de seu distúrbio fóbico que se prolongou de várias maneiras até os seus 10 anos e voltou depois de adulto.
O principal conteúdo da análise gira em torno de um sonho que o paciente teve quando tinha 4 anos:
Sonhei que é noite e que estou deitado em minha cama (ela ficava com os pés para a janela, diante da janela havia uma fileira de velhas nogueiras. Sei que era inverno quando sonhei, e que era noite). De repente a janela se abre sozinha, e vejo, com grande pavor, que na grande nogueira diante da janela estão sentados alguns lobos brancos. Eram seis ou sete. Os lobos eram inteiramente brancos e pareciam antes raposas ou cães pastores, pois tinham as caudas grandes como as raposas e suas orelhas estavam em pé como as dos cães, quando prestam atenção em algo. Com muito medo, evidentemente, de ser comido pelos lobos, gritei e acordei. Minha babá correu até minha cama, para ver o que tinha acontecido”
– Freud, obras completas, Vol. 14, p. 41
Através da interpretação, Freud chega a algumas conclusões sobre o conteúdo latente das imagens manifestas no sonho:
- É noite → Estou na minha cama dormindo
- A janela se abre → De repente eu acordo
- Árvore de Natal → Expectativa de satisfação sexual
- Os lobos → Os pais
- Sentados → São presentes, presenteiam
- Grande Nogueira → Estar no alto e observar
- Eles olham com atenção → O menino olha com atenção
- Eles são brancos → Roupa de cama, a roupa dos pais
- Eles estão imóveis → Eles se movimentam
- Eles têm cauda de raposa → Super compensação pela castração
- Medo de ser comido pelos lobos → Desejo de satisfação sexual com o pai
Freud verá através da análise que o lobo era um substituto do pai e a fobia de lobos da criança é na verdade o medo/desejo de ser possuído pelo pai. Por que uma fobia? Porque para ser possuído pelo pai ele precisaria ser castrado como a mãe. A criança inicialmente se identifica com a mãe castrada e depois do sonho rebela-se contra isso, num claro protesto de sua masculinidade. É exatamente a repressão deste desejo que retorna na forma de Fobia de Lobos.
Talvez esta seja a melhor maneira de entendermos as reduções que a interpretação freudiana são capazes de causar na multiplicidade do inconsciente.
No sonho havia seis ou sete lobos, ou seja, tudo começa na multiplicidade. A própria história da criança é múltipla: povoada de empregados e empregadas da casa, da irmã, dos primos, de cachorros e ovelhas da fazenda. Mas vemos a interpretação pouco a pouco matar a multiplicidade: Freud troca os lobos da matilha pelo lobo-pai.
É estranho: Freud vê um sonho com figuras no plural, sabe de um inconsciente povoado de pulsões, mas na interpretação parece trabalhar no sentido contrário:
- 7- Os sete lobos do início, através da interpretação, se transformam em cabritos de uma história infantil contada pelo avô. Conclusão: o paciente é o sétimo cabritinho.
- 6- Todos os outros seis cabritinhos foram literalmente devorados pelo lobo. E aqui Freud relembra o complexo de Castração.
- 5- A hora em que a criança vê os pais no coito. Ou o algoritmo romano V sendo a posição das pernas da mãe no momento do coito.
- 4- A posição de submissão da mãe que atrai e ao mesmo tempo assusta.
- 3- Três é o número de movimentos para frente e para trás realizados durante o ato sexual.
- 2- Os pais, um castrador e a outra castrada.
- 1- o Pai
Uma criança sonha com seis ou sete lobos, mas no final, onde eles foram parar? Sumiram, se perderam no processo de interpretação. A matilha sonhada some, só um lobo se salva: o pai.
Manifestamente, Freud ignora tudo sobre a fascinação exercida pelos lobos, do que significa o apelo mudo dos lobos, o apelo por devir-lobo. Lobos observam e fixam a criança que sonha; é tão mais tranquilizador dizer que o sonho produziu uma inversão e que a criança é quem olha cães ou pais fazendo amor. Freud conhece somente o lobo ou o cão edipianizado, o lobo-papai castrado castrador, o cão de casinha, o au-au do psicanalista”
– Deleuze e Guattari, Mil-Platôs, vol.1, p. 54
Qual o problema da interpretação freudiana? A crítica de Deleuze e Guattari incide na questão Interpretação X Experimentação. Tudo que o paciente fala é automaticamente jogado em uma rede prévia de interpretação. O relato A pouco a pouco se torna a interpretação B. Uma coisa significa outra. E, no fim das contas, tudo se vê relacionado com um ponto central, um fundamento, um determinante absoluto: Édipo. Todo conteúdo, por mais misterioso que seja, deixa cair seus mistérios para se deixar enredar nas malhas de Édipo. O que não está claro é deduzido. O que contradiz é descartado.
A própria escrita do caso parece em alguns momentos uma leitura fria: “Emprestar palavras e pensamentos”, “comunicar tais construções ao analisando”, “a interpretação não foi muito bem sucedida”, “não foi possível convencê-lo”, “impor ao paciente uma outra concepção de sua história”.
A conclusão é a mesma de todo o Anti-Édipo: a psicanálise é uma máquina pronta de interpretação. É um trabalho de ligue os pontos, para sempre formar a mesma imagem, enquadrar qualquer fala na teoria já pré-estabelecida. Ela precisa de sua pedra angular: Édipo, caso contrário, toda sua construção desmoronaria.
A pergunta de Deleuze e Guattari é: Até onde a interpretação pode ir? Voltemos ao caso. Em determinado momento, o paciente relata que não conseguia evacuar. Ele dizia nestes momentos que o mundo parecia estar como que envolto por um véu. Era então preciso fazer uma lavagem estomacal. “Que véu é esse?”, pergunta Freud, “o que ele significa?”. Mas ele mesmo responde: “Este véu é o ventre materno. Com a doença, há um desejo de retorno ao ventre materno. Se o véu fosse rompido, ele renasceria e teria uma nova chance de ser feliz”.
Isso só pode significar que ele se identificou com a mãe, que o homem faz o papel do pai, [o procedimento de lavagem] repete o ato de acasalamento, como fruto do qual a criança-excremento – novamente ele – vem ao mundo. A fantasia de renascimento se acha, então, estreitamente ligada à condição de satisfação sexual pelo homem. Então a tradução agora seria: apenas se ele puder substituir a mulher, tomar o lugar da mãe, para se deixar satisfazer pelo pai e lhe gerar um filho, a sua doença o abandona. Portanto, a fantasia de renascimento era apenas a reprodução mutilada, censurada, da fantasia-desejo homossexual”
– Freud, obras completas, Vol. 14, p. 134
E como se não bastasse, ele arremata dizendo:
Pode-se facilmente juntar numa unidade, que revela então todo o seu sentido. Ele deseja estar de volta ao ventre materno, não para então renascer simplesmente, mas para ali dentro ser atingido pelo pai no coito, dele obter a satisfação, gerar um filho dele”
– Freud, obras completas, Vol. 14, p. 135
A pergunta de Deleuze e Guattari não pode mais ser ignorada: Quando a psicanálise vai longe demais na interpretação? Em que momento a interpretação começa a levar para lugares que mais atrapalham do que ajudam? A resposta deles está no Anti-Édipo: quando a psicanálise interpreta tudo segundo uma única perspectiva: Édipo.
Freud se defende dizendo que o inconsciente edípico é anterior aos fatos ontogenéticos, ou seja, ele faz parte de esquemas filogeneticamente herdados. Édipo seria então uma força a priori que organizaria a subjetividade e fundamentaria nossas experiências, algo parecido com um saber instintivo animal. Édipo seria então o âmago do inconsciente. Édipo a priori? Ora, eis o problema!
Para Deleuze e Guattari, Édipo não é a priori, ele é introduzido social e historicamente. Édipo não é um fundamento do inconsciente, ele é efeito de uma subjetivação precisa no tempo e no espaço: Europa dos séculos XIX e XX. Tudo começa num tempo e espaço, que moldam a cabeça do pai (ou do psicanalista)! É ele quem está paranoico, é ele quem delira, e por fim faz seu filho delirar consigo.
A esquizoanálise diria: criança não sabe o que é Édipo! Ela aprende à força! Édipo é uma das maneiras de cortar os fluxos da mesma maneira que cortamos madeira e mármore para construir uma casa. Édipo é a arquitetura predominante do inconsciente naquela época. Estava na moda, todos construíam seu inconsciente assim. Ou seja, não é que o Psicanalista tenha inventado o inconsciente e as pulsões, elas são fruto de seu tempo.
Dito da maneira mais direta possível: Édipo é social e não filogenético! Ele é uma maneira de organizar o inconsciente e portanto a sociedade. E o psicanalista é apenas mais um agente de repressão, que continua o que a família começou. No fim das contas é a sociedade como um todo que edipianiza dizendo: “Ele é igualzinho ao pai, ela faz igual à mãe”, a psicanálise só continua o trabalho!
Neste sentido, qual o risco no trabalho de interpretação? Tornar as Sínteses do Inconsciente Ilegítimas! É dar um acabamento ao que foi começado e não foi terminado. O paciente chega no divã com pontas soltas, rebarbas, detalhes a arrematar. A interpretação freudiana, com seu fundamento edípico, termina por esmagar qualquer realidade produtiva do desejo e torna o sujeito normal.
Ao interpretar, a psicanálise corta os fluxos de produção. Liga um significante a um significado oculto, quebra as sínteses conectivas com o fora, remetendo tudo ao ambiente familiar: o lobo é o pai. Quebra a multiplicidade das sínteses disjuntivas que experimentam para remeter tudo às figuras de Édipo: ou você se identifica como pai castrador ou como mãe castrada. Enfim, transforma a síntese conjuntiva aberta para a diferença em uma síntese conjuntiva fechada na representação: “Então era isso… então eu desejava meu pai!”, “Então meu professor é meu pai”, “Então Freud é meu pai”, “Então Deus é meu pai”, “Então meu cocô é o pinto do meu pai”, “Então as bundas são a bunda da minha mãe”, “As empregadas da casa são a minha mãe”, “As borboletas são a minha mãe”. Adeus aos lobos, cabritos, adeus multiplicidade. Com a interpretação freudiana furiosa, incessante e interminável, chega-se sempre ao mesmo lugar, o desejo perde sua força de criação e começa a girar em falso.
Mas voltemos aos lobos. Afinal, o que são eles? O que a psicanálise tem a dizer sobre os lobos e as matilhas? Nada! Freud inclusive diz durante a apresentação do caso: “Esta pergunta parecia não ter resposta”. Pois bem, nós sabemos o que são os lobos. Eles são a multiplicidade! A criança entrava em devir-lobo. Mas a interpretação da psicanálise impediu que o devir continuasse. A lobo era um devir animal, um bando se movendo num mapa, se expandindo! Tudo fazia parte de uma linha de desterritorialização! Devir lobo é linha de fuga. Mas infelizmente nunca saberemos onde ela levaria.
O Devir-Lobo era uma maneira de resistir a Édipo. Resistir a uma vida pequeno-burguesa, onde todos os caminhos já estavam determinados. O sonho deu medo porque era um chamado da multiplicidade! Um chamado selvagem, um desejo de não ser como papai nem como mamãe. Toda criança quer a multiplicidade dos lobos, só Freud não viu! Toda criança ouve o chamado dos lobos nas suas mais variadas formas, mas nós não escutamos.
O lobo, os lobos, são intensidades, velocidades, temperaturas, distâncias variáveis indecomponíveis”
– Deleuze e Guattari, Mil-Platôs, vol.1, p. 59
Como dizem Deleuze e Guattari, o desejo não é reprimido por ser desejo de papai-mamãe, ele é reprimido por ser perigoso, revolucionário, por colocar por terra os fundamentos da sociedade e do pensamento representativo. O desejo não para de fazer ligações, de abrir-se! Desejo, diferença, criação, expansão são sinônimos, são lobos em um matilha percorrendo um território aberto.
Onde daria este devir lobo? Nunca saberemos! Porque Freud não soube escutar um Devir, esmagou as matilhas embaixo de sua pedra angular: Édipo, viu um pai onde havia lobos.
Não se reprova a Psicanálise só por ter selecionado enunciados edipianos, pois estes enunciados, numa certa medida, ainda fazem parte de um agenciamento maquínico em relação ao qual eles poderiam servir de índices a corrigir, como num cálculo de erros. Reprova-se a Psicanálise por ter se servido da enunciação edipiana para levar o paciente a acreditar que ele ia produzir enunciados pessoais, individuais, que ele ia finalmente falar em seu nome. Ora, tudo é uma armadilha, desde o início: nunca o Homem dos Lobos poderá falar. Ele pode falar o que quiser dos lobos, gritar como um lobo, Freud nem o escuta, olha seu cão e responde ‘é papai’[…] O homem dos lobos receberá a medalha psicanalítica por serviços prestados à causa, e até pensão alimentícia como as que se dá aos antigos combatentes mutilados”
– Deleuze e Guattari, Mil-Platôs, vol.1, p. 66
Muito massa! Eu amei a aula dos Mil-Platôs sobre a psicanálise. Foi muito forte.
Segundo texto que leio por aqui, me parece que esse Deleuze e o tal do Guattari, tinham é nada pra escrever, estavam sem ideias. Devir-lobo? pra onde,por finalidade nenhuma?
“O devir diz respeito a uma produção de diferença, que estende outros rumos para a vida, e não se reduz às concepções de reação, de contraposição e de negação.” Maicon Barbosa.
Muito interessante!