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Definimos o pequeno ritornelo ético em três movimentos: primeiro, a transformação do material em expressão, traçando limites territoriais; segundo, o desenvolvimento de agenciamentos interiores, distinguindo um dentro e um fora; terceiro, a utilização do território como suporte para a desterritorialização, descobrindo o fora. No entanto, essa organização é ainda muito didática, porque a desterritorialização não está apenas no fim do processo, como fim e conclusão, mas acompanha todos os movimentos do ritornelo.

Assim, podemos perguntar: qual é o estatuto da multiplicidade em cada momento do ritornelo? Isso leva Deleuze e Guattari a propor uma outra dimensão do conceito, que chamam de grande ritornelo estético. Aqui, a questão não será “o que é um território?”, mas “como um território lida com a desterritorialização que lhe acompanha necessariamente, quais são seus vetores, que máquina os organiza?”. Deleuze e Guattari propõem três modelos estéticos retirados do livro “Teoria da Arte Moderna” de Paul Klee:

“Ora se vai do Caos a um limiar de agenciamento territorial: componentes dimensionais, infra-agenciamento. Ora se organiza o agenciamento: componentes dimensionais, intra-agenciamento.  Ora se sai do agenciamento territorial, em direção a outros agenciamentos, ou ainda há outro lugar:  interagenciamento, componente de passagem ou até de fuga.  E os três juntos. forças do caos, forças terrestres, forças cósmicas: tudo isso se afronta e concorre no ritornelo.” 

– Deleuze e Guattari, Mil Platôs, 4

I. Caos

Quando pensamos em Caos, geralmente o associamos à pura desordem. No entanto, os autores propõem uma ideia de Caos como aquilo que cria e destrói. É a multiplicidade pura, em toda sua violência, desterritorialização absoluta. Não exatamente desorganização, mas uma desmedida, uma velocidade muito grande para acompanhar. Por isso, as forças do Caos são ameaçadoras, elas desfazem toda consistência, alargando qualquer limite ao infinito.

Deleuze e Guattari sugerem que o paradigma da arte clássica é aquele que se preocupa com a imposição de uma forma ao Caos. O belo clássico surge da modelação do disforme: uma escultura renascentista de um herói grego é arrancada do puro mármore, virtual bruto de toda forma. O artista clássico é um demiurgo, um semi-deus, que quer organizar o Caos impondo-lhe uma bela forma.

Outro bom exemplo: as sonatas de Mozart. A repetição marca um território harmônico e melódico que se desenvolve de forma justa, bem amarrada, regulando os excessos. A forma é o fundamental da música clássica. Nesse tipo de música, a liberdade é alcançada em um jogo com regras muito bem definidas. O compositor cria suas melodias dentro de limites bem definidos e nos impressiona com sua sutileza, economia e elegância. 

II. Terra

O segundo movimento do grande ritornelo tem a Terra como elemento fundamental. A imposição de limites ao caos organiza um interior e nele se descobre a multiplicidade. A Terra é a multiplicidade agenciada pelo território, é a desterritorialização relativa, que abre os territórios em si mesmos, que os torna múltiplos ainda que fechados. Aqui, o ritornelo é uma repetição variada, uma reorganização dos limites, uma flexibilidade com os elementos territoriais.

É o paradigma proposto para a arte romântica, que busca pelo fundo múltiplo das formas. O artista romântico é um herói que se apaixona pela terra e desafia Deus em um corpo a corpo com as forças. Vive o território como um exilado, vagante, ouvindo um grito da terra. É a busca obsessiva pelo sublime, a beleza catártica, epifânica, transcendental. Pensem em Fausto fazendo um pacto com Mefistófeles em nome do conhecimento mais elevado.

As sinfonias de Beethoven servem como exemplo musical: o que há de fundamental nas formas é respeitado, mas todo o resto é flexibilizado. A mão do compositor é afetada por uma multiplicidade inconformada, que pede passagem. As forças da terra, movimento aberrante interior ao território, transforma o modelo, como num delírio. Os motivos enlouquecem e variam dentro de suas próprias formas, a composição torna-se um desenvolvimento perpétuo, irreverente e orgástico. 

III. Cosmos

Há ainda um terceiro movimento derivado do Cosmos, palavra que remete ao conjunto do universo. O primeiro movimento do ritornelo impõe limites e traça um território; o segundo descobre uma multiplicidade interior a estes limites; o terceiro é aquele que se pergunta pela multiplicidade do fora. Somos tomados pelo Cosmos como por um encantamento: afinal, o que é a multiplicidade pura?

A diferença pura, a multiplicidade em si mesma, a desterritorialização absoluta não é sequer pensável – só nos chega como inspiração. O Cosmos inspira o artista, toma sua sensibilidade, o afeta de tal forma que ele não quer mais permanecer protegido em seu território. O artista moderno quer devir, entrar em relação com o mundo das forças. O ritornelo é a metamorfose do Caos em Cosmos, isto é, da multiplicidade ameaçadora em puro entusiasmo.

A arte moderna expressa aquilo que está do lado de fora dos agenciamentos territoriais. O artista se esforça para incorporar esse mundo de intensidades puras que é o Cosmos e transformar o não-visível, não-pensável, não-audível em cor, pensamento e som. O escritor torna-se sintetizador de pensamentos, o pintor quer imprimir uma paisagem ou exprimir o que a paisagem sente, o escultor não pensa mais em termos de forma, mas de movimento. 

Como exemplo musical temos as paisagens sonoras de Debussy. Sua música não traz mais limites bem definidos, mas tenta tornar sonora a própria duração. Como soa uma catedral submersa? O artista cósmico quer viver como artesão cósmico, buscando manter a heterogeneidade entre a inspiração e a técnica. A composição não trata apenas de notas, mas de um tempo condensado, de uma densidade própria, daquilo que não pode ser apreendido do lado de dentro.

Conclusão

Seja no pequeno ritornelo ético – das nossas relações particulares com os territórios – seja no grande ritornelo estético – da relação com o conjunto de forças que atravessam os territórios, o conceito de ritornelo é onde Deleuze e Guattari se propõem a pensar os movimentos em um território. Nele, encontramos a repetição da multiplicidade, cada vez apreendida de uma forma diferente: como caos amedrontador, como terra enlouquecida, como cosmos inspirador.

Ao menos três perguntas surgem do ritornelo: que meios temos para nos territorializar frente ao Caos?; que princípios usamos para nos distribuir sobre a Terra?; qual a permeabilidade desse agenciamento em relação ao Cosmos? Qualquer resposta dada será um ritornelo, enquanto princípio de repetição que já se encontra em um processo de diferenciação.

Não se trata de uma redução a uma opção ou movimento. Ora precisaremos de um território marcado, bem delimitado para nos proteger; ora precisaremos recorrer a uma reorganização, uma flexibilidade, uma expansão de limites; ora precisaremos sair para não mais voltar ou para retornar diferentes. Mas em qualquer um dos casos, o objetivo será sempre o de conseguir se mover com alguma intensidade, transformando o Caos em Cais.

Texto da Série:

Mil Platôs

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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