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O questionamento incisivo sobre as provas da existência de Deus leva os censores não apenas a acusar Hume de ateísmo, mas também de heresia. Isso significa mais do que não apenas crer em Deus, significa recusar os costumes, leis, práticas morais e religiosas. Em outras palavras, para os ortodoxos do século XVIII, um ateu, assim como qualquer adepto de outras religiões, era necessariamente imoral.

Já vimos como funciona o mecanismo das acusações: elas não se sustentam enquanto acusação, mas mostram algum traço subversivo do autor. Assim, da mesma maneira que Hume não pode ser considerado ateu, ele não pode ser considerado herético. Em momento algum, o filósofo faz qualquer apelo ao leitor para deixar sua religião ou adotar qualquer outra; e obviamente não incita nenhum tipo de imoralidade. Então, o que se passa nessa acusação?

A questão é que para um teólogo cristão ortodoxo como o que escreveu a carta de acusação a Hume, não só o ceticismo é sinônimo de ateísmo, como também de imoralidade. O motivo é simples: assim como o cético desconfia da crença em Deus, ele não consegue falar da existência ou inexistência do mal. Afinal, existe algo que pode ser chamado rigorosamente de “mal”? E o que seria: uma força? uma tendência? uma essência?

Quem conhece um pouco de história da filosofia sabe que o problema do mal é um dos mais acalorados. Toda espécie de mirabolâncias teológicas surgiram para justificar a existência da dor, da traição, do infortúnio: a queda do paraíso com o pecado original, o livre-arbítrio e a teologia negativa, etc. Tentativas de justificar aquilo que parece injustificável quando pensamos em um Deus poderoso, ciente, presente e bondoso.

Não é apenas na teologia que o problema do mal é polêmico. O próprio senso comum costuma utilizar-se de um conceito de mal para justificar todo o tipo de desgraças. Basta fazer a experiência de apresentar a qualquer pessoa que traz uma história trágica a resposta: “as coisas podem ser assim horríveis mesmo, não tem um motivo”. É possível imaginar a revolta do interlocutor, afinal, é muito difícil encarar o fato de que talvez as coisas mais horríveis aconteçam pela própria necessidade.

Ainda assim, há pensadores que sustentam a ideia de que o mal em si mesmo não existe. Esse é o caso de Hume, além de Espinosa e Nietzsche. Todos eles se recusam a aceitar a ideia de que o mal seja algum princípio oculto que exerce influência sobre nós; ou ainda que haja uma pessoa essencialmente má por trás de qualquer má ação. De modo geral, os três dizem de sujeitos que buscam satisfazer-se, ainda que escolham meios ruins para isso.

Se pensarmos do ponto de vista da natureza, fica ainda mais evidente: por acaso um vulcão é mau? O leão quando mata sua presa está movido por uma força diabólica? O padre quando sente desejo sexual está sendo influenciado pelo demônio? Ao responder sim a estas perguntas, parece que estamos apenas simplificando a questão e nomeando todas as causas que desconhecemos como “mal”.

O que Hume tenta mostrar é que a moral não é uma questão da razão, mas das paixões. Isso significa que é impossível deduzir o certo e o errado de qualquer situação. Nós não conseguimos justificar uma ação dentro do campo da racionalidade, pois sempre haverá muitas variáveis em jogo, a ponto de não haver contrariedade possível. A razão é muito pequena em relação à vida e a moral com certeza está além dos seus estreitos limites de conhecimento.

Não é contrário à razão eu preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo. Não é contrário à razão que eu escolha minha total destruição só para evitar o menor desconforto de um índio ou de uma pessoa que me é inteiramente desconhecida. Tampouco é contrário à razão eu preferir aquilo que reconheço ser para mim um bem menor a um bem maior, ou sentir uma afeição mais forte pelo primeiro que pelo segundo.” Hume, Tratado da Natureza Humana

Para além do racional, a moralidade só pode ser obtida a partir daquilo que sentimos. É uma questão de paixões, nós sentimos o certo e o errado a partir de um complexo mecanismo interativo entre nós e o mundo. Assim sendo, o fundamento da moralidade não pode estar em um princípio que pertença à ordem da razão, pois “a moralidade é mais propriamente sentida do que julgada”. Nós aprovamos ou desaprovamos as condutas de forma irrefletida, na forma de um sentimento espontâneo que acompanha a nossa percepção sobre as ações.

A moralidade é visceral, é uma ideia que reflete rapidamente aquilo que sentimos ao ser afetados em determinadas situações. Assim, o postulado fundamental da teoria moral de Hume diz que o fenômeno da moralidade não pode ser entendido independentemente da sociedade em que tem vigência. Nós não podemos separar uma ação de seu contexto cultural, social e passional. O que podemos é desenvolver relações em que as paixões não sejam violentas, mas calmas – e aqui a razão pode recuperar alguma força.

Em resumo, bem e mal, certo e errado, estão nas relações e não nas essências, seja dos sujeitos, seja dos objetos, seja das forças. Ou seja, a filosofia moral de Hume é considerada herética não por ele fazer qualquer apelo à imoralidade, mas por recusar uma ideia tradicional de moralidade que privilegia a razão sobre as paixões. Para dizer mais uma vez: acusações são uma caricatura, um rótulo impreciso, mas que mostra claramente que o filósofo rompe com ideias estabelecidas e, portanto, se torna perigoso.

Texto da Série:

Três Acusações

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Olavo
Olavo
2 anos atrás

Sim, ótimo. Mas porquê eles defendiam a escravização e inferioridade dos negros? (Espinosa não). É muito paradoxal e contraditório. Isso que me torce o pescoço. E.T. : não vale argumentar que eles “eram homens de seu tempo”..