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Para os atomistas Leucipo e Demócrito, tudo é formado de átomos e vazio, sem exceções. Epicuro dá continuidade a esse pensamento, mas tem que lidar com as contundentes críticas feitas por Aristóteles. É provavelmente nesse processo de argumentação em defesa do atomismo que Epicuro elabora sua teoria da declinação, parénklisis, mais conhecida pelo nome latino dado por Lucrécio: clinamen. 

Antes de mais nada, é preciso comentar que essa ideia não aparece nos poucos escritos que restaram de Epicuro. No entanto, Lucrécio a cita como parte fundamental da física epicurista. Temos bons motivos para acreditar que o conceito existia já nos textos de Epicuro: primeiro, Lucrécio é um epicurista “fundamentalista”, no sentido em que respeita bastante as doutrinas originais; segundo, a teoria atômica epicurista parece incompleta sem um princípio que explique como os átomos entram em choque.

Aristóteles criticava nos atomistas antigos a incapacidade desses de mostrar as causas pelas quais os átomos entravam em movimento. Sabemos que a preocupação do estagirita era argumentar em favor de sua ideia de que o princípio do movimento deve ser imóvel, daí a necessidade de criticar aqueles que falam da mobilidade sem explicar suas causas. Para fornecer explicações sobre o movimento, Epicuro propõe duas modificações na teoria atômica original: 

Primeiro, quanto ao formato dos átomos. Ele propõe que o movimento dos átomos tem como causa o seu próprio peso, visto que eles variam em formato e grandeza. Dessa maneira, os átomos estariam em um movimento paralelo, vertical e perene causado pelo seu peso. A diversidade de forma e tamanho é um fator relevante do atomismo epicurista, na medida em que é mais um recurso usado para explicar a variedade de composição dos corpos. 

Segundo, quanto à estrutura dos corpos. Em Demócrito, as combinações de átomos variam em diferentes formatos (A difere de N), mudanças de ordem (AN difere de NA) e de posição (N de lado vira Z). Epicuro concorda com essa teoria combinatória, mas acrescenta a ideia de que, a partir do choque, há uma seleção das variações possíveis em combinações apropriadas.

Com estes dois novos critérios, Epicuro parece ter respondido às críticas aristotélicas, mas imaginamos que este poderia continuar perguntando: o que causa o choque entre os átomos se eles caem eternamente e paralelamente? Qual é a causa que leva os átomos ao movimento perpendicular e ao consequente contato uns com os outros? Em outras palavras, se os átomos se movessem eternamente em linha reta, jamais um encostaria no outro.

A resposta epicurista, que não cansa de espantar os leitores ao longo da história da filosofia, é: os átomos desviam de sua trajetória habitual. O que isso quer dizer? Que alguns átomos sofrem um ‘desvio espontâneo’, aleatório e indeterminado. Pode parecer estranho inserir no materialismo determinista atômico um conceito como esse. Mas a tese é razoavelmente simples: em sua queda retilínea pelo vazio, os átomos sofrem um pequeno desvio. Mesmo que imperceptível, esta declinação é a condição de possibilidade dos choques atômicos começarem a ocorrer. Assim nasce o mundo: com um pequeno desvio. Isso coloca no coração da natureza uma possibilidade de indeterminação e imprevisibilidade.

Parénklisis ou clinamen é o desvio imprevisível dos átomos e parece uma ideia bastante absurda. Do renascimento à modernidade, a maior parte dos leitores deterministas e mecanicistas do epicurismo desprezaram o conceito por ser absolutamente contrário à ciência nascente. No entanto, a partir dos séculos XIX e XX encontramos ao menos duas teorias científicas que parecem basear-se em uma concepção de indeterminação da natureza. Isso nos dá condições epistêmicas para repensar o clinamen à luz das novas ideias.

Primeiro, a teoria da mutação gênica e, em última análise, da evolução. Como novas espécies vêm a existir? Ora, por um processo de mutação que acontece quando o RNA transcreve o DNA para a replicação e criação de uma nova célula. Ao que tudo indica, esse processo de criação de novos traços acontece de forma espontânea e influencia diretamente na adaptação de um organismo ao ambiente, relacionado à seleção natural. Fazendo uma analogia conceitual, podemos dizer que o clinamen é a mutação e a agregação é a seleção natural.

Segundo, a teoria dos quanta ou os saltos quânticos, base para mecânica quântica de Max Planck, Bohr e Heisenberg. De forma muito resumida, é a ideia de que nas dimensões subatômicas, a matéria não se comporta da maneira contínua e previsível que estamos acostumados a ver. Isso resulta na ideia de que os elétrons, por exemplo, só ocupam um lugar definido quando entram em choque com alguma outra coisa. Ou ainda na ideia de que a luz, formada de fótons, pode se comportar como onda ou também como partícula. Indo mais longe, a mecânica quântica faz a determinação da matéria depender inteiramente do observador.

São apenas dois exemplos de ideias que, a princípio, enfrentaram grande resistência da comunidade científica por proporem em sua base um princípio de indeterminação. O clinamen epicurista se apresenta como uma ideia radical e precursora dessas teorias. Trata-se de um primeiro passo especulativo, mas certeiro no estudo da natureza. É por isso que quase todo grande cientista ou filósofo nos últimos séculos leu Lucrécio e rabiscou alguma coisa à margem de seu célebre poema, o Sobre a Natureza das Coisas

Voltando ao epicurismo, há uma implicação importante do clinamen na ética: a ideia de livre-arbítrio. A declinação oferece para Lucrécio e Epicuro a possibilidade de liberdade, a chance de quebrar os desígnios do destino. Ela é a base física para uma ideia necessária da ética: em alguma medida somos seres livres e temos capacidade de influenciar o movimento da pura matéria.

No entanto, há uma dificuldade teórica a se pensar neste conceito de clinamen: um princípio de indeterminação na natureza não iria contra a ética epicurista? Levando em consideração que a maior preocupação de Epicuro com o conhecimento da natureza era fornecer meios para reduzir o medo, a indeterminação não deixaria entrar novamente a possibilidade de uma natureza monstruosa? É possível encontrar em Lucrécio uma indicação de resposta:

“Pois inda e ainda é necessário que os corpos declinem
muito pouco, não mais que o mínimo, para que os motos
não vejamos oblíquos, o que a realidade proíbe.
E isso, pois, assim manifesto e claro nós vemos:
corpos pesados não podem mover-se, oblíquos, de lado,
ao se precipitarem do alto, tal como discernes.
Mas que nada declina da direção de sua via
reta em nada, quem poderá discernir por si mesmo?”

– Lucrécio, Sobre a Natureza das Coisas

A fórmula “não mais que o mínimo”, fornece uma chave possível de interpretação para esse problema. A indeterminação deve ser suficientemente limitada para não pôr em questão a regularidade da natureza. Por quê? Porque uma noção de natureza constante é fundamental para alcançar a tranquilidade proposta pela ética. O sábio epicurista estuda física porque quer encontrar no conhecimento da natureza o amparo para os seus anseios

Assim sendo, por mais que esse desvio habite a natureza, é necessário que ele seja uma parte mínima, para que tudo não seja arrastado para o caos. O próprio nome clinamen, desvio, só pode ser usado em função de um movimento que, de resto, é regular, certo? Ou seja, a natureza é ordenada e determinada, mas em seu seio encontramos alguns desvios que fazem dela algo criativo. 

O clinamen também aparece para fazer frente a um outro grupo de filósofos: os estoicos, com sua teoria do destino. Para os estoicos, o universo está inteiro interligado por uma tensão, uma força que une todas as coisas num único destino e sentido (que pode ser chamado de Deus). A sabedoria é seguir este destino e acolher o que o acontecimento trouxer. Os estoicos tiram daí a sua ideia de adivinhação. Se o universo está todo conectado, então o sábio estoico pode compreender o destino e prever o futuro. Eis o que Epicuro responde:

“Mais vale aceitar o mito dos deuses, do que ser escravo do destino dos naturalistas”

– Epicuro, Carta a Meneceu

A teoria epicurista da declinação faz do mundo um eterno desabrochar, onde a natureza deixa de ser um relógio suíço, absolutamente regulado, e se transforma em substrato criativo para novas maneiras de pensar e viver, onde algo se inventa para além das formas e do destino.

Texto da Série

Epicuro – Física

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Rafael Mateus
Rafael Mateus
2 anos atrás

“Cultivar a felicidade de uma vida simples”

Célio
Célio
1 ano atrás

Epicuro tentou justificar um movimento (clinamen) desvirtuante da lógica intrínseca de tudo que possui alguma densidade, como é o caso do átomo epicúrio. Sua declinação inexplicável do movimento vertical esperado a partir da queda dos átomos no vácuo como motor gerador do mundo físico carece de mais substância. A história da declinação dos átomos precisa de muito esforço imaginativo pra ser aceita.