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Não se trata mais, em absoluto, da discussão em torno do que deve ser o homem bom, mas sim de ser o homem bom”

- Marco Aurélio, Meditações, cap. X, §16

Se a Disciplina do Assentimento ensina a pensar e a Disciplina do Desejo ensina a aceitar serenamente o que não pode ser mudado, então a Disciplina da Ação vem para completar o quadro, e nos ensina a responsabilidade do agir.

A primeira disciplina fala de uma alma que é capaz de julgar, a segunda fala de uma alma capaz de desejar, e a terceira fala da capacidade da alma de mover nosso corpo. Busca-se aqui a ação refletida, que considera nossa presença em algo maior: a comunidade humana.

Sim, somos todos seres racionais, mas somos todos igualmente seres sociais. Sendo assim, como fazer para conviver bem uns com os outros? Esta é a difícil pergunta da Disciplina da Ação.

Ao romper da Aurora, quando despertar é para ti difícil, põe à tua disposição a ideia de que despertas para realizar a obra de um ser humano; será o caso de manter o mau humor, quando sei que vou fazer aquilo para o qual nasci e em função do que fui instalado no mundo? Ou será que fui feito para ficar deitado e me conservar aquecido sob as cobertas? – Mas isso é agradável. – Então o objetivo de teres nascido foi proporcionar-te prazer? Em uma palavra, não foi para a ação ou a atividade, mas para a passividade? Não vês que os arbustos, os pequenos pardais, as formigas, as aranhas, as abelhas exercem suas atividades próprias concorrendo, cada um deles, para a ordem do mundo? E tu, depois disso não queres realizar as obras humanas? Não participas da caminhada e corrida a favor da natureza? – Entretanto, é preciso também repousar. – Reconheço que sim; a natureza, contudo, determinou uma medida para isso, como certamente o fez com relação ao comer e ao beber; e tu, todavia, ultrapassa a medida, ultrapassas o que é suficiente; e nas tuas ações não é assim que ages, mas fica abaixo daquilo de que és capaz. Com efeito, não amas a ti mesmo, pois, se fosse o caso, amaria igualmente a tua natureza e a vontade dela”

– Marco Aurélio, Meditações, cap. V, §1

Este aforismo é de imenso valor para refletirmos sobre o objetivo da Disciplina da Ação. Somos seres humanos, e como tal, nos foi dada uma missão pela natureza: realizar a obra de um ser humano. Isso pode parecer genérico em um primeiro momento, mas veremos que não. 

Marco Aurélio nos compara com os arbustos, pequenos pardais, formigas, aranhas e abelhas, cada um realizando a sua obra. Ora, mas qual a obra do ser humano? É ter prazer? Não, o prazer é efeito, não nosso objetivo. É dormir passivamente embaixo das cobertas? Não, se fosse tal não teríamos a faculdade de agir e nos mover. Claro, precisamos dormir e comer, mas a natureza dispôs uma medida para isso, não devemos ultrapassá-la. Pois bem, então qual poderia ser a nossa obra?

A inteligência do Universo tem alma comunitária”, diz Marco Aurélio. Nós, seres humanos, por sermos aparentados, vivemos em uma grande comunidade, ligados uns aos outros. A comunidade humana funciona como um grande ser vivo, todas as partes em harmonia uma com as outras. “Os seres humanos nasceram para a reciprocidade”, também diz Marco Aurélio, ou seja, cabe a nós nos unir racionalmente, procurando o melhor caminho para nosso florescer como seres humanos. Este princípio de reciprocidade e comunidade nos torna parte de uma só e a mesma coisa, deste modo, fazendo o bem aos outros, fazemos o bem a nós mesmos. Esta é nossa natureza.

Que o teu regozijo e o teu assentimento encontre morada em uma única coisa, a saber, a transição de uma ação em prol da comunidade para outra ação em prol da comunidade

– Marco Aurélio, Meditações, cap. V, §7

Este princípio de mutualidade faz parte da natureza social do ser humano. Os estoicos viam a natureza humana como algo social, o egoísmo não fazia parte de sua filosofia. Somos seres individuas apenas da perspectiva de que temos corpos individuais, mas somos em realidade parte de algo muito maior. Todo ser vivo quer o seu próprio bem, claro, mas este bem só pode ser conquistado através de uma comunidade e do benefício de todos. Deste modo, a liberdade, a saúde e a felicidade não são conquistas individuais, a liberdade, a saúde e a felicidade do outro são absolutamente necessárias também.

A disciplina da Ação promove todo o tipo de atitudes pensando que o crescimento só pode ser mútuo. Um não precisa se dar mal para o outro crescer. A felicidade pode acontecer em conjunto, todos juntos, ao mesmo tempo. Por isso os estoicos se viam como cidadãos do mundo. Não reconheciam fronteiras nem diferenças. No fim das contas, diria Marco Aurélio, estamos todos trabalhando pela mesma coisa: a plena realização do ser humano como ser racional e social.

Há um tipo de pessoa que mal acabou de fazer um favor a alguém e já está pronta a exigir o ajuste de contas do favor. […] Já outro tipo de pessoa, ainda, que embora de alguma maneira não esteja mais ciente do que fez, é, porém, semelhante à videira que produz uvas e nada exige, uma vez que produz o fruto que lhe é próprio, como foi próprio do cavalo ter corrido, do cão ter caçado, da abelha haver produzido mel. Essa pessoa, ao beneficiar alguém, não fez alarde, limitando-se a transmitir o bem a outra pessoa, como a videira que na próxima estação, novamente produz uvas. – É preciso, assim estar entre aqueles que, de certo modo, agem sem atinar com as consequências? – Sim

– Marco Aurélio, Meditações, cap. V, §6

Esta é a filosofia estoica, agir em prol do bem da comunidade. É isso que evoluirá, no cristianismo para a caridade e a noção de somos todos irmãos. A Disciplina da Ação sabe que o bem de si depende do bem dos outros. O florescimento humano só pode ser conquistado em conjunto, como um só organismo, em concordância e harmonia social.

Texto da Série – Meditações de Marco Aurélio

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Lara
Lara
3 anos atrás

Adorei os fragmentos selecionados e os comentários acerca. O conhecimento do nosso dever está escrito, servir servi servir ,