Vida
Um dos acontecimentos mais escandalosos e fascinantes da cultura antiga encarna-se na figura de Diógenes, filósofo grego que nasceu no ano de 413 a.C.. Neste tempo, a cidade portuária de Sínope, onde o filósofo passou seus primeiros anos, vivia seus tempos áureos. Diógenes era filho de Hicésio, que foi banqueiro ou cambista, não se sabe ao certo, mas certamente trabalhava com a cunhagem e troca de moedas. Este trabalho estava associado a uma vida confortável, sendo assim, é provável que Diógenes tenha tido uma boa educação.
Acontece que seu pai foi pego cunhando moedas falsas. Diógenes acaba expulso de Sínope e seu pai é preso. Sendo assim, o exilado segue para Atenas. Antes de chegar, passa no Oráculo de Delfos e pergunta: “como fazer para obter a maior reputação?”. O Oráculo responde: “parakharáttein tò nómisma“, que significa: “descaracterizar a moeda”, “desfigurar a moeda vigente”. Nómisma significa: moeda vigente, costumes, leis, instituições. Sendo assim, a afirmação é ambígua, podendo significar tanto literalmente “Falsifique moedas em circulação”, quanto “Desafie e modifique os valores vigentes”.
Em Atenas, é bem provável que o recém chegado tenha encontrado Antístenes, conhecido como Cão Original, o qual o aceita como discípulo:
Uma inquebrantável decisão de viver uma vida simples e despojada, uma devoção afincada à autossuficiência, um vínculo sem paralelos com a liberdade de expressão, um desdém saudável pela estupidez e pelo obscurantismo humanos, um nível incomum de lucidez intelectual e, acima de tudo, uma tremenda coragem de viver segundo suas convicções” – Navia, Diógenes o Cínico, p. 18
É impossível, tal como para Sócrates, fazer uma distinção completa entre o Diógenes lenda e o Diógenes histórico. Porque nada se conservou do que os dois escreveram, as anedotas, as histórias (Khreîai, em grego), são praticamente tudo que temos para entender como Diógenes pensava. Isto é muito importante porque a filosofia cínica é basicamente uma filosofia da ação.
A insolência apresenta fundamentalmente duas posições: alto e baixo poder e contrapoder; em termos mais convencionais: senhor e escravo. O kynismos antigo inicia o processo dos ‘argumentos nus’ a partir da oposição, sustentado pelo poder que vem de baixo. O kynismos peida, defeca, urina, se masturba em praça pública, diante do olhar do mercado ateniense; ele despreza a glória, menospreza a arquitetura, não respeita nada, parodia as histórias de deuses e heróis, come carne e legumes crus, deita-se ao sol, mexe com as prostitutas e enxota Alexandre, o Grande, para que ele saia da frente do seu sol” – Peter Sloterdijk – Crítica da Razão Cínica, p. 156
Provas de sua filosofia são dadas através de atos performáticos, como por exemplo depenar uma galinha e jogar em Platão ou defecar no meio do mercado para mostrar o que pensa de alguma atitude. Várias histórias se passam entre Diógenes e Alexandre, o Grande, mostrando ilustrar o confrontos do Sínope com os costumes e poderes vigentes em seu tempo. Não teve discípulos, ninguém era capaz de suportar seus ensinamentos e viver como ele. Diógenes falava através de parábolas, simbolismos, respostas curtas e grossas, mas principalmente por seu modo de viver, seu exemplo próprio: sua filosofia estava colada à sua vida.
Podemos concluir então, não só pela galinha jogada na cabeça, que o grande inimigo de Diógenes é Platão. Aquele que desvirtuou a figura de Sócrates, aquele que trocou o mundo real pelo mundo das ideias. Nomos versus physis, Natureza versus anti-natureza. Diógenes não acreditava em um filósofo incapaz de incomodar os outros, por isso incomodou, e muito, Platão: com gritos e performances, com ironias, sátiras e provocações. Razão pela qual este o chamava de Sócrates enlouquecido.
Um completo abandono do supérfluo; um inquebrantável compromisso em rebentar os ferros que, sob forma de convenções e normas, acorrentam e incapacitam os seres humanos; uma inextinguível sede de liberdade; coragem para desprezar os governos e governantes; indiferença para com assuntos políticos; uma relutância em servir de peão nas guerras forjadas e manipuladas pelas oligarquias; uma vida desvinculada de esposa e filhos; e um menosprezo pelas preocupações comerciais e financeiras que ludibriam praticamente todo mundo” – Navia, Diógenes, o Cínico, p. 52
Os cínicos são os batedores da humanidade, eles vão na frente e voltam para anunciar se estamos indo por um bom caminho. Exatamente por este motivo os cínicos não têm casa, nem abrigo e nem mesmo pátria. Eles são nômades, não podem estar ligados a ninguém, são homens errantes, sua missão é ir na frente da sociedade. E foi isso que Diógenes fez, quando foi capturado por piratas em Creta e vendido como escravo disse: “você me parece estar precisando de um senhor”. Xeníades pede então para que o filósofo cuide de seus filhos. Após sua morte, Diógenes permanece em Corinto.
Em Corinto é muito provável que tenha ocorrido o grande encontro com Alexandre o Grande. Permanece perto de Cinosargues, um ginásio, onde ensinou para estrangeiros e exilados que frequentavam o local. Diógenes passou o resto de sua vida perambulando pelos arredores da cidade e nas praças, teatros, mercados. Vivia de maneira simples, em um tonel, apenas com a roupa do corpo, um manto dobrado, um cantil e um cajado.
As histórias de sua morte são várias, alguns dizem que se deu por auto-asfixia, outros contam que foi mordido por um cão. Algumas fontes dizem que morreu tentando comer um polvo cru. Diógenes sempre disse que ao morrer queria ser simplesmente jogado para fora dos muros da cidade, para que os animais o comessem, ou que fosse enterrado com a face virada para baixo. Seus admiradores, porém, lhe dedicaram um túmulo com os seguintes dizeres:
Até o bronze cede ao tempo e envelhece, mas tua glória, Diógenes, permanecerá intacta eternamente porque só tu ensinaste aos mortais a doutrina de que a vida basta-se a si mesma, e mostras-te o caminho mais fácil para viver”
– Diógenes de Laércio, A Vida dos Filósofos