Skip to main content
CarrinhoClose Cart

“Hoje escapei de todas as circunstâncias difíceis e desfavoráveis, ou melhor, arremessei fora todas as circunstâncias difíceis e desfavoráveis; com efeito, não se achavam fora de mim, mas dentro de mim, nos pontos de vista que eu sustentava”

- Marco AurélioMeditações, cap. IX, §13

Os estoicos praticam a atenção contínua. É o que hoje muitas teorias chamam de mindfulness: é a capacidade de estar continuamente atento ao que se passa em nós, nos outros e no mundo à nossa volta. Coisas como: “Quais sentimentos eu senti agora?”, “O que é isso que está acontecendo?”. Esta habilidade é essencial para nós e também foi para Marco Aurélio e seus antecessores estoicos.

Poderíamos chamar o exercício aqui de “Exame de Consciência”. Ele muito provavelmente foi inspirado pelos pitagóricos, antes mesmo de Sócrates e Platão. A ideia é simples, da mesma maneira que um atleta monitora a si mesmo, os estoicos aprendiam a observar seus pensamentos e comportamentos. Ora, se um atleta corre mais ou menos, se alimenta muito ou pouco, ele poderá dizer com muito mais facilidade o que o está prejudicando ou beneficiando na hora de correr uma maratona. É a mesma coisa com o Exame de Consciência, a ideia é monitorar seus pensamentos para compreender onde eles começam, terminam, crescem ou diminuem. O pensamento pode ajudar (a filosofia aposta nisso), mas pode também atrapalhar, e muito.

Ninguém te impedirá de viver segundo as diretrizes da razão de tua natureza; nada te acontecerá que se oponha à razão da natureza comum” – Marco Aurélio, Meditações, cap. VI, §58

A mente do estoico está sempre vigilante. O que ela vigia? Seus próprios pensamentos e ações. O estoico quer saber como se movem os seus pensamentos, e como ele se comporta em face deles, para avaliar constantemente se está seguindo num bom caminho ou se se perdeu. Como num exame preventivo, quanto antes perceber, melhor. Neste caso, a ideia é fazer com que o pensamento acompanhe nossas ações, não esteja nem adiantado (“tudo vai dar errado, eu sei”), nem atrasado (“nossa, como foi que eu não percebi isso na hora em que estava acontecendo? agora é tarde demais).

Não devemos agir e falar como se estivéssemos dormindo” – Heráclito

Exame da manhã: O despertador toca, acordamos para mais um dia. Ao abrirmos os olhos, é todo um universo que se apresenta para nós. O que faremos com isso? Como habitaremos este mundo? O que faremos com o nosso dia? Ele nem começou ainda, mas já podemos prever várias coisas! Com certeza alguém tentará nos prejudicar, com certeza nós nos sentiremos perdidos ou ansiosos com alguma coisa. Já sabemos mais ou menos quem somos e como funcionamos, então minimamente o campo das ações pode ser previsto.

A vida cotidiana, por mais simples que pareça, é uma aventura, e cada dia é um desafio novo que se nos apresenta. Como colocaremos em prática nossas virtudes? Quais forças e recursos temos à nossa disposição? Que hábitos ruins precisamos observar? Onde precisamos ser moderados? Quais inimigos sabemos que podemos vencer? Quais devemos evitar?

O exame da manhã é um planejamento racional do dia. O que convém e o que não convém? Traça-se um plano e procura-se manter-se fiel a ele.

Exame da noite: certo, o dia terminou, mais um para nossa coleção de vivências. Hora de analisar o que aconteceu. Diferente do exame da manhã, olhamos para as coisas no passado e não no futuro.

Como foi o dia vivido? Valeu a pena? Chegamos onde gostaríamos? Viveríamos novamente? Saiu de acordo com o planejamento inicial? Estas perguntas são maneiras de avaliar aquilo que planejamos com aquilo que aconteceu.

Muitas coisas podem ter dado errado, é hora de entender o porquê. Muitas coisas podem ter dado certo, é hora de nos exaltar e parabenizar. Valorizar os acertos e refletir com cuidado sobre os erros.

A ideia não é ficar se censurando e acusando. O exame de consciência procura constatar aquilo de que somos capazes e aquilo de que não somos capazes. Colocar isso em contraste com nossos valores e nossa natureza. Como manter as virtudes? Como melhorar nossos medos e fraquezas para a próxima vez?

Atenção: O estoico está sempre atento ao longo do dia. E, como diz Heráclito, não vive como um sonâmbulo, ele pratica a vida refletida, o exame de si, como estava prescrito no templo de Apolo e como Sócrates praticou. O estoicismo é atenção plena e contínua de si.

É importante reparar como o exame de si não é uma acusação. Não estamos num júri que nos condenará por nossos erros. Os estoicos possuem uma relação de mestre e aluno, a consciência é como uma voz mais sábia que procura nos indicar caminhos mais efetivos. Do mesmo jeito que o daimon de Sócrates dizia a ele quando alguma coisa estava errada com as suas atitudes ou raciocínios.

Os estoicos são filósofos atletas, eles treinam o tempo todo para a virtude, eles se disciplinam para o desejo, ação, e pensamento. Nesta luta não há descanso. Devemos nos manter atentos aos pensamentos e atitudes; apenas assim podemos nos tornar melhores do que somos e não ser carregados pelas paixões. Os estoicos examinam seus pensamentos e atitudes, pois podem a qualquer momento serem chamados à luta. Por isso a atenção constante, por isso o exame contínuo.

Texto da Série: Meditações

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

Mais textos de Rafael Trindade
Subscribe
Notify of
guest
2 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
Mateus Saccol
Mateus Saccol
1 ano atrás

Eu vejo algumas publicacoes sugeridas sobre mindfullness, com um slogan de “domine a sua mente”, essas praticas nao estariam caindo naquele velho dilema da filosofia sobre a mente ser a chefe do corpo? superior? voces veem essas praticas como mais um problema do que uma solucao na busca pelo conhecimento?