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Epicuro organiza a apreensão da experiência pela mente em três modalidades: primeiro, as sensações, que nos chegam a todo momento pelos sentidos, cujo paradigma é o contato; segundo, as pré-noções, formadas após a experiência, neste caso o paradigma é a repetição e o fruto são as imagens mentais e a linguagem; por último, as afecções ou paixões, isto é, prazer e dor.

Para os epicuristas, as afecções de prazer e dor são formas de conhecimento. Isso é muito importante, pois, ao contrário das escolas filosóficas que costumam colocar as paixões como forças que turvam a razão e prejudicam o conhecimento, para os seguidores de Epicuro, elas são a fonte do conhecimento mais importante para aprender a viver bem: a saber, a natureza de cada ser.

Inútil, portanto, raciocinar e discutir sobre o ponto de saber por que é necessário buscar o prazer e fugir da dor. Isso se sente, diz Epicuro, como se sente que o fogo é quente, que a neve é branca, que o mel é doce, impressões que não necessitam do respaldo de raciocínios complicados, basta assinalar mediante um simples aviso”

– Cícero, De finibus bonorum et malorum

As afecções de prazer e dor são os indicativos que a natureza nos dá para que possamos escolher nossos caminhos. Não são simplesmente efeitos que suportamos ou superamos, são os principais critérios que um epicurista utiliza para se guiar no mundo. Assim, prazer e dor são maneiras de conhecer-se na relação com o mundo e buscar nele uma maneira harmoniosa de viver.

Ao longo da história da filosofia, as afecções foram desprezadas como formas de conhecimento, isso quando não eram consideradas como formas de adoecimento. Isso se mostra claro quando pensamos que paixões ou afecções vêm do grego Pathos ou Pathé, que costumamos hoje derivar nas palavras patologia, patético, padecimento, passivo. 

Os epicuristas são contrários ao estigma das paixões como doenças. Somos tocados pelo mundo, temos sensações e sentimos dores e prazeres, tanto corporais quanto psíquicos. Em si, isto não representa um problema, ao contrário, é dessa disposição em averiguar as afecções que podemos ser mais felizes.

Prazer e dor são polos opostos de um espectro de como podemos ser afetados pelo mundo. Se aquilo que nos toca é harmonioso com nossa natureza, sentimos prazer; se é contrário à nossa natureza, sentimos dor. Observando a dinâmica do que nos causa prazer ou dor transformamos essa passividade em atividade, este é, em termos gerais, o objetivo da canônica epicurista. Em outras palavras, Epicuro ensina a pensar a partir das paixões para tornar-nos capazes de fruir ativamente delas.

Através do prazer e da dor, múltiplos caminhos se abrem, o conhecimento passa a ter um interesse para nós, pois percebemos que somos a parte mais envolvida nas afecções. Se preferimos os prazeres, então não podemos deixar de avaliá-los, pois são a expressão de nossa felicidade em germe. Se queremos afastar o máximo possível as dores, então, igualmente, precisamos nos atentar àquilo que dói, pois é o que nos impede de sermos felizes.

Esta é a razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz. Com efeito, nós o identificamos como o bem primeiro e inerente ao ser humano, em razão dele praticamos toda escolha e toda recusa, e a ele chegamos escolhendo todo bem de acordo com a distinção entre prazer e dor”

– Epicuro, Carta a Meneceu

Qual a dificuldade? Prazeres e dores são indicativos claros, mas eles não são simples. Há dores que compensam ao ponto de tornarem-se prazeres, tanto quanto há prazeres perigosos que levam a enormes dores. E mais, as pré-noções que formamos pela repetição da experiência podem acabar nos enganando acerca do mundo e de nós mesmos, são verdadeiros pré-conceitos que podem jogar contra nós.

Descobrimos pouco a pouco que os prazeres estão no tempo, possuem qualidade e quantidade diferentes. E, o que é mais complicado, aparecem quase sempre misturados às dores. Ou seja, talvez chamemos de prazer algo que na verdade é dor, ou de dor algo que na verdade é um prazer, pois é difícil dizer onde um começa e o outro termina, daí a necessidade de pensá-los. 

Comecemos com a quantidade: os prazeres variam conforme a quantidade daquilo que os causa. Com sede, podemos tomar um gole d’água, um copo ou uma garrafa inteira. A quantidade de prazer que obteremos será diferente de acordo com a quantidade de líquido ingerido. Podemos dizer o mesmo das dores: se tomarmos um choque de 1 a 10 micro ampères, sentiremos apenas um formigamento; aumente isso para 200 mA e correremos riscos de queimadura e parada cardíaca. 

Além da quantidade, os prazeres e dores também possuem qualidades diferentes. Tomar um suco é qualitativamente diferente de tomar água. Melhor ou pior? Não sabemos até experimentar. Há prazeres do corpo, prazeres do pensamento, prazeres da linguagem, prazeres da memória, prazeres imediatos, prazeres distantes, prazeres da amizade, prazeres do amor e, claro, também toda uma gama de dores relativas a essas qualidades. Nos resta pouca coisa melhor a fazer do que pensar sobre as dores e prazeres de que somos capazes.

Um prazer hoje pode gerar uma dor amanhã e uma dor hoje pode gerar um prazer amanhã; algo prazeroso em determinado momento da vida pode ser doloroso em outra época, e assim por diante. Começamos com algo simples: prazer é prazer, dor é dor, mas vemos como a partir de diferentes quantidades e qualidades tudo se torna muito complexo.  Em suma, quando falamos das paixões tratamos de um campo dinâmico, digno de atenção e conhecimento.

Todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser sempre evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos”

– Epicuro, Carta a Meneceu

Epicuro fez de sua filosofia uma reflexão sobre os prazeres dignos de uma vida bem vivida: isso passa necessariamente por aprender a andar por este caminho difícil formado de prazeres e dores. A canônica trata dos instrumentos que temos para avaliar os prazeres e dores e leva diretamente à ética, onde averiguamos com calma quais são as paixões que devemos cultivar em nosso jardim.

Texto da Série

Epicuro – Cânonica

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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