[Os homens] forjam inúmeras ficções e, quando interpretam a natureza, nela descobrem milagres, como se ela delirasse com eles”
– Espinosa, Tratado Teológico-Político, Prefácio
Como vimos nos primeiros textos desta série, a Fortuna é o plano de imanência da Política, na medida em que os homens percebem as causas exteriores que os governam como contingentes. A Superstição, por sua vez, surge como resultado da vida comum do homem nesse campo, mas só persevera através das causas políticas.
Partindo dessa perspectiva, as relações de governo entre os homens são pensadas sempre pelo paradigma da dominação. Há um esforço para manter os homens ignorantes, para que se possa dominá-los melhor. A Superstição é uma ferramenta que suscita obediência e agrega a multidão em torno de causas imaginativas, daí sua eficiência em garantir o modelo obediente da política.
A grande proeza desse instrumento político é fazer-nos abandonar a racionalidade possível em prol da crença fácil. Uma massa amedrontada e supersticiosa, disposta a acreditar em narrativas falaciosas, aceita sem questionar as condições desfavoráveis que lhes oferecem. Nesse sentido é que surgem os Milagres, como operadores funcionais da ignorância em prol da dominação.
O acontecimento extraordinário é o signo necessário para a confirmação de um poder exterior que se aplica sobre uma superfície imaginária muito dilatada. O Profeta se apoia na viva imaginação e depende de signos que a confirmem, senão ele é apenas um sonhador. As Profecias são feitas à base de percepções vivas, mas sempre interiores à mente do Profeta, por isso, dependem de imagens exteriores que a confirmem.
No Tratado Teológico-Político, Espinosa não questiona a justeza dos profetas bíblicos, mas ele mostra como funciona e de onde nasce o seu poder. Ele não discute se Moisés, Isaías, Salomão eram justos. Ele sabe que de nada adianta atacá-los, uma postura agressiva não nos coloca uma prática efetiva. O que interessa é entender os mecanismos que permitiram que eles dirigissem o povo para, em um segundo momento, apontar os maus usos dessas ferramentas na atualidade política.
Espinosa desvela as estratégias políticas que assaltam o tabuleiro, ele penetra na mente dos bispos e reis: homens que justificam suas ações arbitrárias na leitura mal feita de um livro antigo para mover os peões em nome de seus interesses. Mas quais são os instrumentos que lhes permitem manejar essa força popular?
Primeiro, a compreensão que eles fazem da Eleição Divina os favorecem, o rei diz: “Fui escolhido para lhes governar”. Em segundo lugar, a leitura das leis os favorece, o bispo diz: “Não desobedeçam a Deus”. Agora, para fechar a conta, um novo artifício, um truque de mestre, o cheque-mate, a maior demonstração de poder – o Milagre!
O vulgo, portanto, está obrigado a conhecer apenas as histórias que mais podem comover as almas e dispô-las à obediência e à devoção. No entanto, a plebe está pouco capacitada por si mesma a fazer um juízo sobre tais matérias, comprazendo-se com os relatos e a conclusão singular e inesperada dos acontecimentos, do que com a doutrina ensinada pelas histórias, por tal motivo, ela tem, além de histórias necessidade de pastores e ministros da igreja que lhe deem um ensinamento, preenchendo a debilidade de sua compleição espiritual”
– Espinosa, Tratado Teológico-Político, V, 18
Não há nada melhor para selar a ignorância do que a narrativa de um feito impossível. A tirania se apoia em uma visão milagrosa dos fatos para garantir seu poder. Mas Espinosa já nos disse, não há ‘lei natural’, a natureza não pode ser desobedecida. Então, perguntando filosoficamente, o que são os Milagres?
1. Os Milagres como Contranatureza
Os homens aprenderam a chamar de divino aquilo de que ignoram as causas. Assim, Deus sempre aparece como o lado ordenado da natureza, que sem ele seria disforme e caótica. Quando Espinosa diz Deus e Natureza são uma mesma coisa, imediatamente esses homens pensam: “Por que devemos adorar Deus se ele não é uma majestade?”; “Como pode Deus ser todo-poderoso se ele não pode intervir na Natureza?”; “Se Deus não é superior à natureza, então não há razão para adorá-lo!”
Na visão de homens que creem em um Deus imperador da natureza, não existe signo mais forte do que uma estória qualquer de como Deus teria curvado a natureza para favorecê-los. Qualquer relato intervenção divina em favor de um homem, de um povo, de uma causa, funciona como o sinal abençoado de que aquele é o caminho correto. Ora, aí está justamente o perigo. Qualquer homem que se valha da frágil disposição dos homens em crer em favorecimentos milagrosos não deve ter boas intenções. Espinosa não perdoa:
Quais não são as pretensões da desrazão humana, a ausência de toda ideia saudável de Deus e da natureza, na confusão que faz entre as decisões de Deus e aquelas do homens, nos limites, enfim que ela assinala ficticiamente para a natureza, da qual o homem acredita ser a parte principal!”
– Espinosa, Tratado Teológico-Político, VI, 1
Desrazão pretensiosa é o nome que o filósofo dá para esses homens que confundem convenientemente os limites entre Deus e a natureza. Com uma pequena frase ele já nos coloca um primeiro argumento contra eles, porque eles pensam que são a parte principal da natureza? O que lhes dá o direito de imaginar que a natureza quebraria suas regras em função de tão pequenos seres?
Espinosa está basicamente dizendo que a natureza é infinitamente maior do que as pretensões de homens tão pequenos, que, apesar disso, insistem em acreditar que o curso eterno das coisas poderia tomar um desvio para lhes favorecer.
Posto o que Espinosa chama Deus, – ordem fixa e imutável da natureza – tudo aquilo que Ele determina só pode ser visto na perspectiva da eternidade. Não há distância entre Deus e a natureza que nos permita ver um curvando-se ao outro. Deus é a natureza e, por isso mesmo, algo de muito estranho se passa nos milagres, o que será?
Já sabemos, são narrativas falaciosas usadas como instrumento político. Os milagres simplesmente não existem. Mas será esse o argumento definitivo? Mesmo não existindo, eles poderiam ser usados de maneira positiva não é? Não poderiam, por exemplo, ser usados como belas histórias motivadoras? Pensem numa cura fantástica, isso não poderia ajudar os doentes?
Espinosa dirá enfaticamente que o milagre não pode ser algo positivo pois ele promove ignorância. Cada vez que nos apoiamos em uma ilusão imaginativa estamos mais distantes das causas reais, aquelas que de fato produzem os efeitos. Posto dessa maneira, o filósofo diz que não apenas os milagres mostram um uso político impotente mas privilegiam uma visão ignorante da natureza.
Além disso, se assumimos uma visão da natureza como ontologia da necessidade, onde Deus expressa as verdades eternas que regem o universo, assumir que ele pode quebrar essas regras é assumir não que Deus é poderoso, mas o contrário, que ele é impotente. É nesse sentido que os milagres são contranatureza. Eles mostram alguma atividade necessária para recolocar as coisas no lugar, eles apontam uma falta, uma mácula na perfeição natural.
Nada ocorre na natureza que contradiga suas leis universais, ou mesmo que não coincida com suas leis ou não seja uma das suas consequências […]. Ajuizando de outro modo, não seria admitir que Deus criou uma natureza tão impotente e estabeleceu leis tão estéreis que é frequentemente obrigado a vir-lhe em socorro para que ela se conserve e que as coisas ajam segundo suas intenções?”
– Espinosa, Tratado Teológico-Político, VI, 4
No momento em que afirmarmos um Deus imanente, eficiente, tal qual a natureza, o milagre passam de prova para refutação. Dito de outra maneira, se o milagres são obras contrárias à natureza, então eles nos fazem duvidar desse Deus ao invés de justificá-lo. Os milagres não são sobrenatureza, eles são contranatureza.
Assim, precisamos admitir que o milagroso é simplesmente aquilo que não conhecemos a causa e tomar o surpreende como algo que nos clama à busca pelo conhecimento e não à manutenção da ilusão pela narrativa fantástica. Negar que o milagre é apenas uma obra que ultrapassa a compreensão é, nas palavras de Espinosa, “um modo bastante ridículo de confessar a ignorância”.
2. Os Milagres contra as Escrituras
Não faltam exemplos de Milagres no velho testamento: Moisés abrindo o mar vermelho (Êxodo 14), Elias fazendo o fogo cair dos céus (Reis 18), Daniel livre da cova dos leões (Daniel 6). Espinosa não lança dúvidas sobre a boa intenção dos Profetas, mas ele aponta a impossibilidade de que Deus tenha agido como um grande monarca quebrando as leis da natureza em favor deles. O que se passa nas Escrituras, então?
Em muitos casos, se fala nos detalhes impressionantes, nas imagens inacreditáveis. O mar vermelho abrindo no meio ao comando do cajado de um velho senhor é realmente uma estória e tanto. Mas Espinosa sempre volta à materialidade do texto. Lá está escrito que “o Senhor fez retirar o mar por um forte vento oriental toda aquela noite”. É mais fácil acreditar que o mar foi rasgado ao meio do que a maré apenas tenha baixado um pouco? Espinosa responde: “Se a Escritura contasse a ruína de um Estado à maneira dos historiadores políticos, isso de modo algum agitaria a multidão”
Ou seja, na maioria dos casos milagrosos da Bíblia, é simplesmente uma maneira de contar que prende a atenção. Um truque de fala que move a imaginação dos ouvintes, que congrega o povo em torno de uma ideia de heroísmo. Em um primeiro sentido, os milagres nas escrituras têm apenas a função de “imprimir a devoção na alma da plebe”.
Há inúmeros casos suspeitos. Tomemos o exemplo de Josué contra os cinco reis (Josué, 10). Deus interrompe o movimento do Sol para que o seu exército vencesse a batalha. Mas o que nos leva a crer que o grandioso Josué conhecesse algo de astronomia? Ao contrário, tudo nos permite dizer que ele ignorava completamente, a julgar pela gafe. Não é o Sol que gira em torno da Terra, como está escrito no relato, mas o contrário. Deus teria de parar a Terra e não o Sol para que o dia durasse mais.
Para além da questão científica, podemos perguntar porque os homens preferem acreditar em algo tão impossível em vez de acreditar na evidência histórica de que essa narrativa é simplesmente um instrumento de conversão? Já que muitos dos Gentios cultuavam o Sol, espalhar uma fábula de um Deus Hebreu super-poderoso que faz parar o Sol, parece ser um jeito bem astuto de convencer sobre a superioridade de um Deus sobre o outro.
Mais uma vez, os milagres não ajudam a compreender. Além de não servirem na compreensão da natureza, eles atrapalham o entendimento do que há de verdadeiro nas escrituras. Aceitar esses relatos miraculosos impede que vejamos o que de fato estava em jogo na história dos Hebreus: constituição do povo, disputa territorial, organização social, afirmação de uma religião por sobre as outras.
Ponho milagres e ignorância como equivalentes” Espinosa, Carta LXXV a Oldenburg
Conclusão
Não precisamos dos Milagres para compreender a natureza, nem para entender as escrituras, ao contrário eles apenas anuviam nossa compreensão sobre elas. O único caráter dos milagres que permanece de pé após a análise espinosista é de instrumento político. Não há nada que justifique o uso desse instrumento a não ser as exigências teopolíticas de manutenção de um estado de ignorância.
O filósofo não precisa dos milagres, ele não pretende dominar a natureza, ele quer compreendê-la. O piedoso não precisa dos milagres, ele não quer ser julgado pela natureza, ele quer se unir a ela. Então, precisamos perguntar vezes e vezes sem conta, quem carece de milagres?
Quem carece de milagre é quem perdeu a comunhão com a natureza, por isso teme. 🙂
Perfeito, Vera!
Milagres são eventos que não conseguimos explicar. Apenas isso. Mas as pessoas sempre complicam, colocando deus no meio.
Justamente
Milagres existem como força da própria natureza no conatus em cada ser.
Amei. Sempre questionei a passagem sobre o mar em função de sua profundidade, a ressurreição de Lázaro. Precisamos entender o Ser.
Texto excelente. Escrito com muita propriedade.