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A física epicurista se baseia na ideia de que a natureza é formada por pequenas partículas indivisíveis – os átomos – e, para além disso, apenas o vazio. Das pedras aos pensamentos, tudo é composto de átomos e vazio, sem exceções. Sendo assim, só podemos concluir que a alma também é formada dessa maneira. Tendo em vista a tradição filosófica e religiosa sobre a alma imaterial e imortal, a visão epicurista é bastante revolucionária:

“A alma é um corpo composto de partículas sutis disseminadas por todo o agregado que constitui nosso corpo”

– Epicuro, Carta a Heródoto

A psykhé é formada por átomos redondos e lisos, que graças ao seu formato movem-se velozes como o pensamento. Então, aqui há um longo embate com os platônicos de um lado, defensores da alma incorpórea e eterna; e com os pitagóricos de outro, defensores da alma como uma tensão harmônica. Epicuro não deixa passar: “Quem diz ser a alma incorporal fala tolices”.

É o fato de ser material que garante à alma tanto o agir quanto o padecer. Como poderia ser imaterial se sofre diretamente os efeitos do mundo à sua volta? As sensações atestam um corpo afetado por um mundo exterior e dotado de uma alma como capacidade de apreender o que se passa nessa relação. O que acontece quando morremos? Epicuro explica:

“Quando a massa total dos átomos do corpo se dissolve, então também a alma se dispersa, não possui mais as mesmas capacidades de antes e nem é mais excitada, portanto não pode mais perceber. Pois não é possível imaginá-la como algo que perceba e que seja capaz de tal excitação por si só, isto é, fora do composto”

– Epicuro, Carta a Heródoto

Para os epicuristas, nada persiste após a morte, senão a matéria que formava o corpo como substrato disponível para novas combinações. O mesmo se passa com a alma, sua mortalidade se dá numa dispersão ou desagregação em partes mais elementares que não guardam nenhuma identidade ou memória. 

É preciso dizer mais uma vez: o conceito de alma epicurista dispensa o recurso a quaisquer entidades transcendentes como as ideias platônicas ou os números pitagóricos. Mais ainda, no conceito de Epicuro, a alma perde todo o status privilegiado, sendo colocada ao lado do corpo, junto e não acima dele. A alma é a sede da consciência, mas esta depende das sensações que lhe comunicam o corpo.

Mais uma diferença com o conceito platônico de psykhé está na maneira como eles pensam a divisão da alma. Enquanto Platão propunha uma divisão tripartite (parte concupiscente, no abdômen; parte irascível, no peito; parte racional, na cabeça), Epicuro propõe uma divisão em apenas duas partes, melhor nomeadas por Lucrécio: ânima e ânimo.

A ânima é a parte da alma que se encontra dispersa por todo o corpo, responsável por recolher as sensações e também pelas afecções de dor e prazer. Ela é responsável por levar as informações sensíveis de um lugar a outro, semelhante ao que consideramos hoje o sistema nervoso periférico. Extremamente rápida, é como um impulso nervoso, um sopro comandado pelo ânimo.  Além disso, a ânima é irracional (álogos), no mesmo sentido em que são as sensações, isto é, anterior ao juízo.

O ânimo é a parte da alma que se encontra concentrada no peito e, mais especificamente, no coração. Esta é a parte da alma relativa à elaboração de pensamentos e imagens, incluindo afetos. Segundo Diógenes de Laércio, é esta a parte racional, que trabalha a partir das informações que a ânima traz. É no ânimo que reside a avaliação das sensações, a formação das pré-noções e o cálculo das afecções de dor e prazer. Importante notar como não há uma cisão completa entre parte racional e parte sensível, há apenas uma diferença na maneira como cada parte da alma lida com elas.

Onde está a alma antes do corpo existir? Ora, apenas dispersa como toda matéria não agregada. Ao passo que somos formados, a alma nasce, junto do corpo, e apreende o mundo a partir desse momento. Não há saber anterior ao contato com a experiência, não há conhecimento como reminiscência, o que existe é uma união entre corpo e alma interagindo e desenvolvendo em conjunto com o corpo ao longo de uma existência.

Como funciona a relação entre o mundo e a alma? Vimos como, para os epicuristas, a sensibilidade se dá no paradigma do contato. São pequenas partes dos objetos que chegam até os órgãos do sentido. A partir daí, eles entram em contato com a ânima, dispersa por todo o corpo, formada por átomos redondos e lisos que correm rapidamente e comunicam as sensações ao ânimo. Como o pensamento também é feito de átomos, podemos supor que o ânimo formula um rearranjo atômico a partir do que a ânima lhe informa, devolvendo movimentos em resposta.

Este movimento afeta outras partes do corpo fazendo-o também se movimentar. Ou seja, o corpo é afetado de uma determinada maneira e devolve este movimento alterado para o mundo. A alma acolhe os movimentos e os rebate de volta para o mundo à sua volta. Materialismo puro: por ser feita de átomos, a alma acolhe e desvia estes movimentos em novas direções. 

As semelhanças com o sistema nervoso são impressionantes. A alma é a responsável por acolher as sensações que chegam até ela, desviá-las, processá-las, ruminá-las. Por ser feita de átomos mais rápidos e lisos, consegue perceber as sutilezas da sensação e tomar as melhores decisões. Por isso a aposta de Epicuro nas sensações, na razão e na alma em conjunto.

Qual a finalidade da alma? Fazer um balanço, uma medição, das sensações dos prazeres e das dores envolvidas em qualquer ato. A alma estima os prazeres e dores imediatos e atrasados que tal ação proporcionará. A alma é um instrumento para a vida prazerosa, na medida em que é capaz de avaliar as sensações e elaborá-las em ideias.

A alma é o movimento que afasta nosso corpo das dores e aproxima nosso corpo dos prazeres. Como vários canais internos que captam e devolvem o movimento ao mundo, a alma é capaz de interferir ativamente na relação de prazeres e dores com o mundo. Este desvio é possível graças ao clinamen, que para os epicuristas é o fundamento do livre arbítrio. A ética epicurista baseia-se totalmente na capacidade de indeterminação que a alma traz em si mesma.

Texto da Série

Epicuro – Física

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Zelma Cincotto
Zelma Cincotto
11 meses atrás

Gostei. parabéns pelo trabalho de enriquecimento intelectual, principalmente porque a mediocridade está imperando o mundo.
Sucesso!

Juliana
Juliana
10 meses atrás

Oi, cheguei aqui agora! Muito grata por ter encontrado!! Texto muito bem escrito e inofrmativo!